terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

O bom humor do primo pobre

O bom-humor do primo pobre

Há males que vêm para bem, ensina a sabedoria popular. O futebol escocês pode ser considerado um primo pobre do futebol inglês. O “mercado” escocês tem dimensões diminutas, com uma população igual à da cidade do Rio de Janeiro. Isso não representa um décimo da população inglesa, sem falar na diferença de poder aquisitivo. Este quadro impõe condições financeiras franciscanas se comparadas à milionária Premier League inglesa. Por um lado, isso faz com que os clubes escoceses tenham dificuldades em competir de igual para igual não somente com os clubes ingleses mais importantes mas também com os poderosos clubes italianos, espanhóis e alemães. Essa relativa “pobreza” tem seus benefícios em termos de ingressos ainda acessíveis à grande maioria dos torcedores e por dar mais chances aos jogadores escoceses diante de uma legião estrangeira bem menor e menos qualificada do que a da Premier League inglesa.
Mas esses assuntos já foram tratados na crônica “Visitando o Paraíso”. Agora gostaria de tratar do senso de humor escocês. Ninguém fala nele. A Escócia é sempre lembrada pelo trio whisky, homens de saias (kilts) e castelos. Comparado com o humor inglês, famoso pela sutileza e ironia, o humor escocês é bem mais direto e, pelo menos para um brasileiro, extremamente engraçado. Um dos meios de entrar em contato com um país é a leitura dos jornais diários. Assim que cheguei a Glasgow para assistir a Celtic versus Hearts, comprei o The Herald e, como sempre, fui direto ao caderno de esportes. Na última página havia a coluna de um jornalista com o nome mais escocês possível: Hugh MacDonald. Na semana anterior, tinha havido um enorme debate na imprensa inglesa, condenando o plano da Premier League de realizar uma rodada inteira em cinco cidades no exterior a partir da temporada 2010-11. Muitos consideraram isso o fim da picada (inclusive eu, que pretendo escrever uma crônica a respeito). MacDonald não perdeu a chance de ironizar a descoberta dos colegas de que o futebol havia se tornado uma máquina de fazer dinheiro. A começar pelo título do seu artigo: “Why football has no soul left to sell” (“Porque o futebol não tem mais alma para vender”). E no decorrer do artigo ele alfinetou:

“Alguns colunistas lamentaram o fato de que a Premier League vendeu a alma do jogo. Alma? Do futebol? O Diabo não iria querer a alma do futebol nem que você oferecesse a ele pagar em suaves prestações.”

Quanto à acusação de cobiça feita aos clubes, MacDonald também não perdoa:

“Ora, o negócio dos clubes é fazer dinheiro. Uma pista: eles cobram na entrada. E cobram com o entusiasmo de guerreiros mongóis em uma tarde de pilhagem sem limites, com direito a serviço de bar e buffet coma-o-que-puder, servido por mil virgens vestais.”

É ou não é bem diferente do humor inglês? Outro colunista do The Herald, Kenny Hodgard, reclamava do excessivo controle imposto aos torcedores dentro do estádio:

“Quem se levantar durante o jogo é visto como alguém que acaba de soltar um peido entre dois movimentos de um concerto de música clássica. Você não pode beber, você não pode fumar e nem mesmo duvidar da sexualidade do juiz.”

Por falar em jogo, naquela tarde, antes de entrar no Celtic Park comprei um fanzine chamado “Not the view”. Vejam só como os editores se apresentam:

“Essa porcaria é feita por torcedores do Celtic que não são os maiorais nem tampouco são inteligentes. (...) É produzida em um computador Mac da Apple que tem vontade própria mas o amamos assim mesmo.”

Se eles pensam isso deles mesmos, imaginem o que eles dizem dos torcedores do arqui-inimigo Rangers? “Bluenoses” (narizes azuis), Orcs (viram o filme “Senhor dos Anéis”?), hunos e animais são as formas carinhosas deles se referirem aos torcedores do Rangers. Lamentam que as autoridades de Barcelona estejam predispostas contra os escoceses depois da mal comportada visita dos narizes azuis, bebendo pelas ruas e urinando por todo o lado.
Também há espaço para comentar acerca de dois jogadores poloneses que foram dispensados pelo clube. Maciej Zurawski, um jogador de seleção e de boa técnica, é lembrado por sumir nos jogos importantes, só jogando bem contra pequenos. Seu compatriota Jiri Jarosik, diz o fanzine, era o contrário: jogava bem nas partidas contra Milan e cia e simplesmente desaparecia contra o Saint Mirren ou o Motherwell. Acerca de Jarosik, eles lembram uma tirada implacável do técnico do Celtic, Gordon Strachan. Durante a já tradicional conferência de imprensa para apresentar as novas contratações, o próprio Jarosik descreveu a si próprio como um meio campista capaz de chutar e marcar gols com ambas as pernas. Strachan foi ácido com seu novo jogador diante dos repórteres: “Maravilha, então você é ainda melhor do que eu pensava”.
A melhor de todas estava no Sunday Herald, com os resultados da rodada de sábado e comentários acerca dos jogos. Era a matéria acerca do jogo Falkirk 4x0 Saint Mirren. Três dias antes o pequeno Saint Mirren tinha eliminado o favorito Dundee United da Copa da Escócia, jogando fora de casa. Eu vira o jogo pela televisão e ficara admirado com a elasticidade e os reflexos de Mark Howard, o goleiro do Saint Mirren que garantiu a mirrada vitória por 1x0. Na tarde de sábado a sorte de Howard mudou e ele papou dois frangos na goleada sofrida diante do Falkirk. Vejam só o que o técnico da equipe, Gus McPherson (tinha que ser um Mc alguma coisa), disse sobre o seu goleiro diante da imprensa escrita, falada e televisada:

“Pois é, na 4a. feira todos os comentaristas o aplaudiram por uma atuação fenomenal e hoje ele cometeu uma série de erros. Eu nunca entendi porquê os goleiros escolhem essa posição, mas quem escolheu ser goleiro foi ele”

O mesmo McPherson fez uma piada involuntária sobre sua capacidade crítica como técnico. Depois de ver seu time tomar de quatro ele teve a coragem de dizer o seguinte: “Acho que jogamos razoavelmente bem. Eu não acho que tenha havido uma grande diferença entre os dois times.”
Só quatro gols...

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