terça-feira, 27 de novembro de 2007

CONVERSANDO COM A PRIMA DE MARADONA - SEGUNDA PARTE

Hoje continuamos nossa conversa com a jornalista argentina Marcela Mora y Araujo. Desta vez ela fala sobre os problemas de adaptação dos jogadores latino-americanos na Terra da Rainha, sobre a nebulosa máfia de agentes e dirigentes de futebol e, conforme prometido, sobre a famosa gambetta.
A partir de uma série de entrevistas e contatos com jogadores sul-americanos, sobretudo argentinos, Marcela percebeu um problema que poucos conseguem imaginar. Famosos e muito bem pagos, nem por isso os jogadores de futebol integram-se com facilidade à sociedade inglesa. Ficam isolados, primeiramente, pela língua. “Para um ser humano é espantosa a circunstância de trabalhar sem conhecer o idioma de seus companheiros”, comenta Marcela. “Isso acontece aos jogadores de futebol o tempo todo. Os futebolistas se movem como nômades. Até a Arábia Saudita está cheia de jogadores vindos do mundo todo.” Quando chegam ao clube, jogadores como Tévez ou Verón ficam sentados no vestiário sem entender as piadas, sem poder conversar com ninguém.
Há diferenças que afetam muito o rendimento dos jogadores. Na Inglaterra, lembra Marcela, os jogadores chegam, cada um no seu carro, apenas 3 horas antes do jogo. Na Argentina a equipe fica concentrada três dias, jogando cartas e conversando. Quer dizer, na Inglaterra é mais difícil criar um vínculo pessoal, é uma relação fria, estritamente profissional. Em campo, o jogador muitas vezes é colocado fora da sua posição, rende mal e acaba na reserva.
Fora de campo também é complicado. Certa vez, conversando com Hernán Crespo, famoso goleador da seleção argentina, ele disse a ela: “Estou aqui na minha casa luxuosa, sem saber como fazer para estabelecer uma conexão à Internet, sem saber a quem chamar e sem saber como falar”. Os clubes investem milhões nestes jogadores, mas ao contrário do que fazem empresas multinacionais ou até mesmo o Exército, não há nenhuma infra-estrutura de apoio. Um jogador entrevistado por ela dependia totalmente de um amigo que falava a sua língua. A tal ponto que quando a mulher do jogador foi dar à luz ele levou o amigo para assistir ao parto, porque ele era a única pessoa em quem confiava e a única esperança de comunicar-se com os médicos. Marcela recorda um outro caso, em que a esposa do jogador mexicano Juan Pablo Angel foi atendida em estado grave, enquanto ele “ficou numa cadeira dormindo com o bebê recém-nascido nos braços, sem entender nada da língua nem ser capaz de falar nada.” Ela vê isso como um caso extremo de alienação.
A barreira mais difícil de transpor diz respeito à própria forma de jogar futebol. Marcela conta um caso delicioso a esse respeito. Em uma Copa do Mundo, a seleção argentina marcou um belíssimo gol a partir de uma troca de 24 passes. O que gerou o comentário indignado de um torcedor inglês pela Internet: “Pra quê gastar 24 passes se um chutão do goleiro daria o mesmo resultado?”
Os jogadores sul-americanos gostam de ficar com a bola, manter a posse da bola, enquanto os ingleses gostam de correr pelo campo, em lançamentos longos para a frente. Para Marcela, esta diferença nasce do contexto econômico: “na América do Sul, as crianças pobres têm na bola o único brinquedo, dividido com dezenas de outras crianças. É normal que apreciem ficar com ela.” Na Inglaterra o sistema é outro: a individualidade é malvista e desde cedo as fantasias e as jogadas criativas são recriminadas em nome do jogo coletivo. “O jogador argentino”, diz Mora y Araujo elaborando sua hipótese, “tem o desejo pela bola, o desejo de criança de entrar em campo e ficar com ela o maior tempo possível, não quer dar um chutão para um companheiro lá na frente como no futebol inglês.”
Para Marcela, não há nada que exemplifique melhor esta defasagem cultural do que o termo gambetta. A palavra vem do italiano, mas é vista como sinônimo do futebol argentino. Para o ex-craque da seleção argentina Jorge Valdano, “a gambetta é o gosto pela firula, é outra forma de dançar o tango”. Há dois elementos essenciais no ato de “gambetear”. O primeiro é enganar o adversário e o outro é brincar com a bola, guardá-la para si. Até mesmo jogadores que não “gambeteiam” valorizam a gambetta, por ela fazer parte de uma tradição cultural na qual estão inseridos. Mascherano, conhecido como um impiedoso volante de contenção, definiu a gambetta como “Aquilo que o futebol tem de mais lindo”. O eficiente mas não muito técnico Hernan Crespo foi direto como seus potentes chutes a gol: “É aquilo que os argentinos sabem fazer.” Para o habilidoso Carlos Tévez, a gambetta é “driblar com tango, tentando enganar e bater seu adversário”.
A gambetta, este traço identitário do jogador argentina, é intraduzível para o inglês, argumenta Marcela. Sendo assim, fica tudo mais complicado: “Como fazer se se não há palavra para o teu papel dentro de campo, se não há palavra para o que fazes com o teu corpo?” Na Itália e na Espanha, ao contrário, não há a mesma dificuldade, a comida é a mesma, o estilo de futebol é familiar.
O jogador sul-americano, ademais, vem de uma cultura em que as regras informais imperam, e Marcela lembra que quando visitou o Rio foi aconselhada a não parar nos sinais vermelhos. Mas não é isso que acontece na Inglaterra. “Aqui”, enfatiza Marcela, “a princípio tem que se seguir a regra escrita, é essa que vale”. É claro que os ingleses não são santos. Cita um episódio que ilustra bem o que quer dizer. Ela estava fazendo um programa em que o grande atacante inglês Gary Lineker, ex-chuteira de ouro na Europa, entrevistava os outros jogadores já agraciados com o mesmo prêmio. Lineker era sempre anunciado como o jogador que nunca levara um cartão amarelo. Intrigada com aquilo, Marcela pergunta a ele se nunca havia feito uma falta. Lineker responde zangado “É claro que sim! Mas nunca tomei um cartão!” Ou seja: a questão é “not get caught”, evitar ser pego em flagrante. Marcela aponta as incoerências: “Aqui se critica a simulação mas também se pratica, aqui se critica um gol de mão, mas se ganha um Mundial com uma bola que não se sabe se atravessou a linha, é um sistema de valores diferente, mas nesta cultura nunca se pode dizer 'Ah, mas essa regra não vale.'” Tudo isto dificulta a carreira dos jogadores latino-americanos no futebol inglês.
Caso raro de jogador brasileiro bem adaptado ao futebol da ilha, Gilberto Siva foi entrevistado por Marcela para uma revista da Nike. A empresa de material esportivo queria que Gilberto Silva dissesse que no Brasil é mais importante jogar bonito do que ganhar. “Logo Gilberto Silva”, diz Marcela sem conter um riso irônico, “que ganhou um Mundial [2002] com um Brasil que jogava um futebol nada bonito”. E durante a entrevista ele afirmava: “No Brasil é muito importante ganhar, estou muito orgulhoso de haver ganho uma Copa do Mundo”. Marcela entrega a entrevista e dizem a ela que seria necessário que Gilberto dissesse algo mais (aquilo que eles queriam). “Então mostrei-lhes a transcrição integral da entrevista em que eu lhe perguntava: 'Poderia dizer que no Brasil é menos importante ganhar do que jogar bonito ... ' E ele respondia: 'Não, não, não”, foram oito negativas em seguida”. Apesar disso a Nike publicou: “No Brasil jogar bonito é mais importante do que ganhar, diz Gilberto Silva”. Para Marcela, este episódio revela “como se vende o futebol, de como se embala, empacota e se projeta uma idéia”.
Sobre o futebol como negócio, Marcela relembra um encontro com Kia Joorabchian e amigos deste. “Em um desses hotéis cinco estrelas indo atrás dos jogadores e de suas famílias, esbarrava em empresários gordos e engravatados, sentados falando ao celular e fumando charuto. Perguntei a um deles se concordava que o futebol era uma forma de poesia ou arte.” Ele negou, sorrindo e afirmando cinicamente: “Futebol é cobiça”. Com os bilhões hoje gerados pelo esporte mais popular do planeta, personagens escusas gravitam em torno dos jogadores. Marcela é contundente a este respeito: “os jogadores são trabalhadores em torno dos quais se construiu esse monstro. Podemos vê-los como soldados, como os músculos de uma organização criminosa, marionetes de um cenário assustador com gangsters panamenhos, árabes misteriosos e personagens deste quilate.”
O genial Maradona conhece como ninguém este teatro. Marcela estava com ele quando o barraram na entrada de uma tribuna especial. O craque estava de jeans e camiseta, e ali o traje obrigatório era camisa e gravata. Maradona recusou-se a mudar de roupa e desabafou com Marcela: “O que esses caras não entendem é que tudo isso, toda essa riqueza, foi criada por nós, jogadores de futebol”. Os pés de Diego Armando Maradona não pisam mais os campos com sua inigualável e sempre surpreendente técnica. Mas sua “prima espiritual” Marcela Mora y Araujo usa sua visão refinada e crítica para apontar que há algo de errado nesse enredo: “Aonde há pobreza haverá bons jogadores. E eles serão vendidos para a Europa e haverá pessoas pagando para vê-los e se fará dinheiro com eles. Nós, o público, somos os consumidores desse negócio. É um desafio conseguir fazer com que o futebol, além de um grande show, não seja algo grotesco.”

Prorrogação:
Marcela sempre interessou-se pelos aspectos culturais e políticos do futebol. Quem quiser conferir pode dar uma clicada neste excelente artigo sobre a Holanda vista pelos argentinos e que explica de forma exemplar o uso que a Ditadura Militar argentina fez da Copa de 1978 (link: http://blogs.guardian.co.uk/worldcup06/2006/06/21/holland_according_to_argentina.html ).

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Conversando com a prima de Maradona (crônica inédita) - A 2a. PARTE será postada HOJE A NOITE




Mentira. Marcela Mora y Araujo não é prima de Diego Armando Maradona. Mas esta jornalista argentina também é craque. Veio aos quinze anos para a Inglaterra, onde estudou e começou sua carreira no rádio. Logo percebeu que seria inapelavelmente escalada para cobrir a América Latina. Sendo assim, escolhe o esporte, pois “era algo agradável de que eu poderia me orgulhar enquanto na política e na economia era tudo nefasto.” Seu envolvimento com o futebol veio de berço: teve um avô que foi jornalista esportivo e desde menina frequentava a Bombonera com sua família. Afirma com voz tranquila: “O Mundial da Argentina foi jogado quando eu tinha 11 anos, Maradona virou um ídolo juvenil quando eu tinha doze anos, ou seja, é algo absolutamente da minha geração... o futebol me acompanhou sempre, na minha vida pessoal e na minha identidade nacional, por toda a vida.” Enquanto tomávamos um café em volta de uma mesa onde se amontoavam dezenas figurinhas de jogadores ingleses colecionadas por seu filho, Marcela concedeu uma entrevista exclusiva ao nosso blog (que marra, hein!).

Trabalhando para a BBC em 1994, fez uma importante reportagem sobre os hinchas (torcedores organizados) do Boca Juniors. Conseguiu entrevistar José “El Abuelo” (“Vovô”) Barritta o mítico líder da Barra Brava do Boca. Descobriu que ele comandava uma rede muito bem organizada que explorava de tudo no bairro, desde a venda de ingressos para os jogos até o tráfico de drogas, passando pela venda de refrigerantes e sanduíches no estádio. Mas a organização liderada por José Barritta também fazia caridade, ajudava crianças com necessidades especiais, enfim, criava uma rede clientelística tão forte que quando ele morreu em 2001, com 48 anos, o seu enterro foi um verdadeiro acontecimento.

Marcela estava com Barrita durante o clássico Boca x River, vencido pelo último por dois a zero. Acontece que depois do jogo, longe do estádio, dois torcedores do River foram assassinados, um com 19, outro com 23 anos. E nos muros de Buenos Aires apareceu a seguinte pichação: “Boca 2x2 River”. Ou seja: um torcedor do River morto para cada gol. Três anos depois “El Abuelo” foi preso e condenado a treze anos de prisão, embora no momento do crime ele estivesse em outro lugar da cidade com Marcela e dezenas de outros torcedores. As autoridades argentinas, pressionadas pela opinião pública para que dessem um basta no problema da violência das torcidas lançaram mão da "Associação Ilícita", um recurso jurídico da época da Ditadura Militar para prender José Barrita, mesmo que nunca tenham comprovado a sua participação nas mortes dos torcedores do River Plate. Esse mesmo tipo de malabarismo legal foi utilizado na Holanda contra o hooliganismo das torcidas de Ajax e Feyenoord.

Mesmo assim, “El Abuelo” se fazia presente em La Bombonera. “La Numero Doze” é como se chama a hinchada do Boca, um nome que reconhece a importância do grupo como uma espécie de 12o. jogador. Pois bem, enquanto “El Abuelo” esteve preso, graças à utilização de uma lei da época da Ditadura Militar, a Barra Brava do Boca deixava um vasto espaço vazio na arquibancada para simbolizar o lugar que deveria ser ocupado pelo seu líder (ver foto acima). “A partir de este incidente”, afirma Marcela, “passei a entender que o futebol reflete tudo o que ocorre na sociedade.

Na Inglaterra ela fez várias reportagens sobre hooligans e tem uma interpretação extremamente original sobre o declínio da violência nos estádios ingleses. Não nega ter havido uma “revolução” no futebol inglês com a entrada do dinheiro da televisão a cabo (Sky), o pesado investimento no controle e na repressão, o aumento exorbitante dos preços e o fim dos terraces (local atrás do gol onde os torcedores mais fanáticos assistiam ao jogo de pé). Tudo isso foi importante, diz ela, mas há algo que os jornais não noticiam. Trata-se de uma transformação na cultura juvenil. Na década de 90 os jovens ingleses passaram a reunir-se ilegalmente em lugares descampados onde ouviam música e consumiam ecstasy. Essas festas que chegavam a reunir 4 a 5 mil jovens apresentavam, todavia, um problema difícil: como reunir toda essa gente sem despertar a atenção da polícia? Foi aí, segundo Marcela Mora y Araujo, que entraram em campo os hooligans, que já dispunham de redes subterrâneas informais e do know-how para enganar os homens da lei. Os caras passaram a fazer a segurança das raves, como eram chamadas essas festas. Depois de passar a 6a. feira à noite dançando e conversando com hooligans de outros clubes, quando chegava o sábado à tarde não havia mais clima para baterem uns nos outros. A hipótese de Marcela, além de extremamente original, chama a atenção para uma questão crucial: a violência das torcidas não diz respeito ao futebol somente e sim às formas de lazer da juventude.

Hoje em dia, Marcela mantém um blog no The Guardian (http://ww.guardian.co.uk/ ) para o qual escreve regularmente sobre futebol argentino e sobre os jogadores latino americanos que disputam a Premier League. Para chegar a ser uma jornalista esportiva respeitada e conhecida como hoje, o caminho de Mora y Araujo não foi tranquilo. Quando ainda trabalhava na BBC, o colega que era responsável pela parte de esportes teria que ausentar-se por dois meses. Marcela ofereceu-se para substituí-lo mas tem o seu pedido negado por ser mulher. Recorre formalmente a seus superiores e participa de um concurso anônimo organizado pela empresa para decidir quem assumiria o posto. Fica em primeiro lugar mas é obrigada a aceitar trabalhar em parceria com um colega. Aos poucos, foi granjeando seu espaço e acabou sendo a diretora da cobertura de uma Copa do Mundo, além de ter feito um documentário sobre as duas copas do mundo ganhas pela Argentina (1978 e 1986) e o contexto político. Participou inclusive do filme oficial da Fifa sobre as copas do mundo.

Ela exemplifica a principal diferença entre o futebol inglês e o futebol argentino a partir do termo gambetta, originário do italiano e segundo Marcela absolutamente intraduzível para os súditos da Rainha. Mas isto será tema da nossa crônica da semana que vem, quando continuaremos a conversa com Marcela Mora y Araujo.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Malandros Otários (outra crônica inédita)

Malandros otários


Se malandro soubesse como é bom ser honesto, seria honesto só por malandragem”


Jorge Ben


A primeira vez que aconteceu eu tomei um susto. Depois de quase quatro meses na Inglaterra, assistindo a dezenas de jogos de várias divisões diferentes, alguns jogos femininos, rugby e até cricket, eu ainda não tinha visto aquilo. Naquela tarde, antes do jogo começar, eu vi o juiz e os bandeirinhas serem vaiados pela primeira vez. Estava acostumado a ir a jogos de futebol no Brasil, onde os homens de preto sempre são saudados com uma estrondosa vaia antes de terem tempo de entrar em campo. Sem falar nas homenagem habituais à progenitora de vossa excelência durante o jogo propriamente dito. Mas na Terra da Rainha é bem diferente.

É claro que os juízes são muito criticados pelos comentaristas por suas falhas e os torcedores também não costumam perdoá-los. Ou seja, é claro que por aqui também se xinga o juiz, até com muita veemência embora sem tanta frequência. O humor inglês se faz presente nessa hora. Quando fui assistir a um jogo do Doncaster Rovers contra o Leyton Orient, meu amigo John Coyle, fanático torcedor do “Donnie”, enfurecido com a atuação do juiz, gritava frases que arrancavam risos da turma em volta. Suas broncas iam desde o mais tradicional: “Are you blind?” (“Você está cego?”), até o mais criativo “Why don't you put a blue shirt?” (“Por quê você não veste uma camisa azul?” - cor do time adversário); sem falar em reclamações habituais: “What does it take for us to get a penalty?” (“O que tem que acontecer para você marcar um pênalti a nosso favor?”) ou “When are you going to take the yellow card from your pocket?” (“Quando é que você vai tirar o cartão amarelo do bolso?”). Até mesmo durante jogos de rugby, onde o público é bem mais contido e educado nas suas manifestações, já vi o juiz quase ser vaiado por uma marcação durante o jogo.

Agora, vaiar o juiz à entrada, eu nunca tinha visto. É claro que toda a regra tem a sua exceção. Se há um lugar na Inglaterra onde o juiz haveria de ser vaiado era ali. Eu estava em Millwall, bairro de Londres famoso às avessas. O time da casa, o Millwall F.C., é bem mais conhecido pelos seus hooligans - dos quais ainda falaremos em outra crônica, do que pela boa qualidade do futebol ou pelas escassas conquistas. Mas eu vou falar de Millwall outro dia, a crônica de hoje é sobre malandragem.

Malandragem? É que a vaia ao juiz chamou a minha atenção para uma das maiores diferenças em termos da forma pela qual o futebol é jogado e apreciado no Brasil e na Inglaterra. O caso do goleiro brasileiro Dida, ocorrido no início de outubro de 2007, ilustra bem o que estou querendo dizer. Em um jogo da Champions League entre a sua equipe, o Milan e o clube escocês Celtic, um torcedor de 27 anos, Robert McHendry, entrou em campo quase ao final da partida. Embora seu time, o Celtic, estivesse vencendo por 2x1, McHendry invadiu o gramado e correu na direção de Dida, tocando no ombro do goleiro e dizendo “Bad luck, Dida” (“Azar, Dida”). A primeira reação de Dida foi correr atrás do torcedor, para depois desabar em campo, do qual saiu carregado na maca. A UEFA, depois de examinar o video-tape do incidente, multou o Celtic e puniu Dida com uma suspensão de dois jogos, por desrespeitar regras que dizem respeito à “lealdade, integridade e espírito esportivo”. Em suma: por ser um mau ator. Até aí, todo mundo sabe.

O incrível é que a reação das pessoas com quem conversei por aqui foi extremamente forte. Dois famosos sociólogos do futebol com quem conversei, desprezaram diferenças culturais e simplesmente se disseram enojados com o comportamento de Dida. A partir daí eu comecei a reparar que o público nas arquibancadas é absolutamente implacável diante da menor possibilidade de “simulação”, ou seja, de um jogador fingir ter sido atingido por um adversário ou mesmo exagerar na gravidade da falta, contorcendo-se na grama. A torcida em uníssono começa a gritar a plenos pulmões “Cheat, cheat!” (“Enganador”). Ou então, no caso da famosa propensão dos atacantes em voarem dentro da área: “Dive, dive!” (“Atirou-se”). É o suficiente para aquele jogador passar a ser perseguido por vaias durante o resto da partida.

Outra diferença é que o comportamento de juízes e jogadores tende a ser (o que equivale a dizer que nem sempre é) mais discreto e equilibrado. Não é tão comum ver os jogadores “peitarem” o juiz e, por outro lado, os juízes dão cartões amarelos e vermelhos muitas vezes sem nem levantar o braço direito, em gestos bem menos espalhafatosos e histéricos que seus colegas sul-americanos. O jogo é bem menos truncado, porque as faltas são em média 25 por jogo, enquanto no Brasil não é incomum termos 40, 60 e até 80 faltas por jogo. É bom notar também que a palavra para “juiz” por aqui é referee, ou seja, árbitro, ao contrário do nosso “juiz”, que estabelece uma interessante e nada elogiosa analogia (para ambos os lados) entre os sopradores de apito e nossos magistrados. Mas agora a pelota do raciocínio já está saindo pela linha de fundo. Voltemos ao mais importante.

No Brasil faz parte da “malandragem” cavar uma falta ou buscar a expulsão do adversário através de uma pantomima. Não digo que isso não ocorra na Inglaterra, mas os torcedores (e os comentaristas) vêem isso como absolutamente inaceitável. Pode ser um resquício do ethos do amadorismo, em que até mesmo treinar era visto como uma forma de desvio em relação ao “fair play”: os dois times tinham que se enfrentar sem preparar-se, que vencesse o melhor. É claro que estamos muito longe dessa época, e o futebol já é profissional na Inglaterra há mais de um século. Mas acho que essa atitude tem relação com o fato do juiz não ser normalmente vaiado ao entrar em campo. É algo que tendo a explicar pensando em questões maiores.

Por questões maiores entendo a própria cultura política e as diferenças em termos de cidadania nos dois países. A tradição de um Estado autoritário e centralizador, desvinculado da sociedade, torna qualquer autoridade suspeita: “todo político é corrupto, todo policial é bandido e todo o juiz de futebol é ladrão”. Todo representante da lei é culpado até prova em contrário, o que é apenas o contra-dom ofertado por um povo que – exceto uma elite privilegiada, é tratado como cidadão de terceira classe. O sistema político da Inglaterra, um parlamentarismo que dura vários séculos sem solução de continuidade, tem muito mais credibilidade junto a seus cidadãos. Os policiais andam de cabeça erguida e desfrutam de relativo respeito. E os juízes de futebol são vaiados e xingados, mas só depois do jogo começar...

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Blyth Spartans x Hinckley United (Crônica Inédita)

Blyth Spartans x Hinckley United


Já ouviste falar do Blyth Spartans? E do Barrow? Que tal o Hinckley United? São todos clubes da 6a. Divisão-norte e alguns de seus jogadores são profissionais. O Brasil, como todos sabem, tem apenas 3 divisões nacionais, além dos inúmeros campeonatos estaduais e suas respectivas divisões. Já na Inglaterra, o sistema é bem diferente. Para começar, há a Barclay's Premier League e abaixo dela, mais três divisões: Coca-Cola Championship (2a. Divisão), Coca-Cola League One (3a. Divisão), e Coca-Cola League Two (4a. Divisão). Até aqui, tudo normal. Os 92 clubes destas quatro primeiras divisões são chamados de League Clubs. Eles representam a fina-flor do futebol inglês. Mesmo na 3a. divisão (Coca-Cola League One), há clubes que já foram campeões europeus como o Leeds e o Nottingham Forest. Os jogadores destes 92 League Clubs são todos profissionais de tempo integral, alguns deles ganhando mais de 100 mil libras (400 mil reais) por semana !

Como estão divididos os 92 League Clubs? Sabe aquelas aulas de geometria e de cálculo que você faltou no colégio? Vão fazer falta, mas farei um esquema para facilitar:


BARCLAY'S PREMIER LEAGUE – 20 clubes

Caem 3 para a Coca-Cola Championship ↓↓↓


COCA-COLA CHAMPIONSHIP – 24 clubes

Sobem 3 para a BARCLAY'S PREMIER LEAGUE ↑↑↑

Caem 3 para a COCA-COLA LEAGUE ONE ↓↓↓


COCA-COLA LEAGUE ONE – 24 clubes

Sobem 3 para a COCA-COLA CHAMPIONSHIP ↑↑↑

Caem 4 para a COCA-COLA LEAGUE TWO ↓↓↓↓


COCA-COLA LEAGUE TWO – 24 clubes

Sobem 4 para a COCA-COLA LEAGUE ONE ↑↑↑↑

Caem 2 para a BLUE SQUARE PREMIER ↓↓


Até aqui, a maior moleza, não é mesmo? Mas agora começa a complicar um pouquinho. A partir daqui temos os Non-League Clubs, ou seja, clubes que não pertencem à elite dos 92 clubes da Football League. A última divisão totalmente nacional – isto é, com clubes do país todo e não somente de uma região da Inglaterra – é a Blue Square Premier, o que em bom português (do Brasil) seria a 5a. Divisão. A imensa maioria dos jogadores é profissional, mas alguns são obrigados a dividir o futebol com outra atividade, ou seja, são semi-profissionais. Dentre os times desta 5a. Divisão há clubes importantes, como o Exeter City, time que em 1902 jogou um amistoso contra a primeira seleção brasileira da história; ou o Oxford United, que já foi campeão da F.A. Cup, o torneio de futebol mais antigo do mundo e do qual ainda falaremos. O Oxford joga em um moderno estádio para 12.500 pessoas, mas há também pequenos clubes, como o Farsley Celtic, que tem um estádio para somente 500 espectadores sentados e que na temporada anterior (2005-6) teve uma média de 390 pagantes. De qualquer forma, a Blue Square Premier ou 5a. Divisão tem seus resultados publicados nos jornais e vários dos seus jogos transmitidos por canais a cabo de televisão em rede nacional. E os dois melhores colocados sobem para a elite dos 92 League Clubs.


Abaixo da 5a. Divisão, não temos mais divisões nacionais e sim divisões regionais. Por exemplo: a 6a. Divisão é dividida em Blue Square North e Blue Square South, ou seja, 6a. Divisão-norte (onde estão os 3 clubes mencionados no início deste artigo) e 6a. Divisão-sul. Os melhores clubes de cada uma destas sub-divisões regionais, após o fim dos respectivos campeonatos disputam um playoff para estabelecer quais clubes serão promovidos para a Blue Square Premier. Os piores de cada sub-divisão também disputam um playoff para ver quem cai para as subdivisões da 7a. Divisão, por sua vez tripartida em Unibond Premier, BGB South Premier e Ryman Premier. Cada uma destas, por sua vez, subdivide-se em duas. O que faz com que tenhamos temos 6 subdivisões na 8a. divisão. Está difícil de acompanhar? Vamos fazer mais um esquema:


BLUE SQUARE PREMIER – 24 clubes


BLUE SQUARE SOUTH – 22 clubes BLUE SQUARE NORTH – 22 clubes


UNIBOND PREMIER -21clubes BGB SOUTHERN PREMIER-22 clubes RYMAN PREMIER-22 clubes


Aqui somente os times mais fortes têm alguns semi-profissionais e a maioria dos jogadores é composta por amadores. E assim continua até aproximadamente a 16a. Divisão, subdividida em inúmeras pequenas ligas regionais. Só para ter uma idéia: abaixo da 8a. Divisão, a 9a. Divisão tem nove pequenas ligas, cujos melhores clubes disputam um playoff para subirem um degrau na pirâmide do futebol inglês. Teoricamente, portanto, um time de amadores poderia ir subindo, subindo, até chegar na Premier League... Além de absolutamente improvável, todavia, iria demorar quase uns vinte anos, mesmo que o time fosse promovido todo ano.

É claro que além disso há também as Sunday Leagues, compostas somente por amadores sem maiores pretensões, veteranos barrigudos, no melhor estilo solteiros x casados. Como o nome indica jogam sempre aos domingos. É para o pessoal poder assistir aos jogos das ligas mais importantes, que acontecem (quase) sempre aos sábados. Eta pessoal fominha...