terça-feira, 2 de outubro de 2007

O verdadeiro país do futebol

A RAINHA DE CHUTEIRAS: 200 dias de futebol na Inglaterra

Marcos Alvito

O verdadeiro país do futebol (crônica publicada em O Estado de São Paulo, no dia 2 de setembro de 2007; aqui vai a crônica original, um pouco maior)

Nossos políticos podem não ser grande coisa, mas todo brasileiro nasce, cresce e morre pensando que vive no país do futebol. Talvez seja melhor escolher com cuidado o seu candidato nas próximas eleições, porque o país do futebol é a Inglaterra. Claro, só o Brasil é penta (por enquanto), Pelé não nasceu em Oxford e David Beckham não chega a valer um drible do Ronaldinho. Todavia, caro leitor, em que país os jornais publicam os resultados da 5a. Divisão ? Aliás, publicam os resultados da 6a. Divisão. Os da 5a. Divisão são analisados um a um e por vezes são transmitidos na televisão a cabo, ou seja, há torcedores dispostos a pagar para vê-los. Em que país os torcedores colecionam os programas dos jogos ? Sim, porque jogo de futebol na Inglaterra é que nem ópera, tem programa e tudo, que inclui não somente as escalações, tabela com os próximos jogos e fotos dos ídolos, mas até a história do clube adversário. Estas relíquias são passadas de pai para filho e podem ser leiloadas a um bom preço décadas depois. Vendem-se também estojos de couro para que elas possam ser guardadas com carinho.
Tá certo, futebol não é ópera, mas o nosso argumento aqui é o seguinte: a cultura do futebol é muito mais forte na Inglaterra: brasileiro adora jogar futebol, adora ver futebol e discutir futebol. O inglês, além de tudo isso, viaja centenas de quilômetros de trem para ver seu clube (estou falando de torcedores normais, não se trata de torcidas organizadas como no Brasil) , enfrentando frio, chuva e neve, e eventualmente a torcida adversária e a polícia. Dezenas de milhares adquirem o pacote de todos os jogos do seu time durante a temporada, e muitos deles gabam-se de não haver perdido um só jogo durante décadas. E não estou falando somente dos grandes times como no Brasil, cujos 13 maiores clubes concentram 80% da torcida. Na Inglaterra o cara torce para o Birmingham City, um time que não ganhou nada em 130 anos de história e que mesmo nas últimas colocações leva mais de 20 mil pessoas ao estádio. Ou para o Oxford United, que já ganhou alguma coisa mas hoje está na 5a. Divisão e teve média de quase 7 mil espectadores por jogo na temporada passada (2006-7), pouco abaixo da média de público do campeonato brasileiro de 2004, que foi de 8 mil torcedores.
O futebol no Brasil tem pouco mais de 100 anos, enquanto os ingleses já falavam de futebol há quatrocentos anos atrás, dêem uma olhada no Rei Lear de Shakespeare para ver se estou mentindo. Por falar nisso, no campo das publicações os ingleses dão de goleada, sem dúvida refletindo um maior grau de escolaridade e renda. Enquanto os nossos literatos, no dizer de Nelson Rodrigues, não sabem bater um mísero corner, na Inglaterra montanhas de livros sobre futebol chegam às livrarias todos os anos. Há de tudo um pouco: enciclopédias, livros sobre a história de um clube ou do seu estádio, biografias autorizadas ou não de jogadores, técnicos, dirigentes (sim, sim) e até de juízes (aí já é demais !). Até os piores hooligans escrevem suas memórias (ou pagam alguém para fazê-lo) e há também os livros acadêmicos que tentam explicar esse e outros fenômenos. Há também grande literatura, como o merecido best-seller de Nick Hornby, Fever Pitch, contando as memórias de um torcedor fanático (redundância) do Arsenal na década de 80. Esse e muitos outros livros foram para a tela do cinema, alguns com muito sucesso, como Football Factory, uma fictícia memória de um hooligan que virou série de televisão.
Além dos já referidos programas oficiais dos jogos, há os fanzines, publicações irreverentes escritas por torcedores para protestar contra tudo: desde o preço dos ingressos e o atacante que não faz gol até a venda do clube para um milionário estrangeiro. Ou seja, o torcedor lê futebol, escreve futebol, respira futebol. A grande imprensa publica cadernos de esportes com até 20 páginas em que o futebol é o centro. Antes do início da temporada de futebol todos os jornais publicam suplementos especiais contendo não somente as previsões, contratações e análises, mas instruções detalhadas de como viajar até um estádio, quais os pubs onde é seguro beber sem ser linchado pela torcida adversária e até sobre a qualidade das tortas salgadas servidas no estádio, cuja arquitetura também é comentada. Isso para ficar somente nos jornais. No rádio, até a famosa e respeitável BBC tem uma estação exclusiva para esportes onde o futebol é o maior destaque, é claro. Há vários programas em que os torcedores debatem com os comentaristas diretamente, ao vivo. É melhor nem falar da televisão; basta dizer que os direitos de transmissão das próximas 3 temporadas foram vendidos pela módica quantia de 2,7 bilhões de libras (aproximadamente 11 bilhões de reais).
As apostas, sobretudo em jogos de futebol, são uma grande indústria (é uma dessas empresas que patrocina o já tão comentado campeonato da 5a. Divisão), e você pode apostar em quase tudo: quem vai vencer, o resultado exato do jogo, que jogador vai marcar primeiro ou por último, quando vai sair o primeiro gol e por aí vai. Muitas vezes há casas de apostas dentro dos estádios e é claro que se pode apostar pela Internet.
Claro, você é brasileiro e não desiste nunca. Mas que tal essa: já ouviu falar de algum apaixonado torcedor brasileiro que tenha solicitado que após a morte suas cinzas sejam espalhadas sobre o campo ? Não ? Pois bem, um único clube, o Manchester United, recebe 25 pedidos deste tipo por ano. Seu vizinho menos rico, o Manchester City, recebe apenas 12... Em 1993 a Football Association teve que publicar instruções sobre como atender a estes pedidos sem prejudicar os gramados. Acontece que a maioria dos defuntos tem preferência pelo círculo central e pela marca do pênalti como destino final. Uma das dicas da Football Association: “procure espalhar bem as cinzas, a concentração num determinado local pode matar a grama”.
Não está convencido ainda ? Tudo bem. Nas próximas páginas vamos tratar de assuntos como os já mencionados e outros como os cantos dos torcedores, a importância dos pubs para o futebol, as rivalidades mais incendiárias, o que os ingleses pensam do futebol brasileiro (que eles chamam de jogo bonito), hooligans, o futebol retratado pelas artes plásticas, rugby (um primo do futebol), a história do futebol inglês e por aí vai. Pode ser até que você não fique convencido de que a Inglaterra é o verdadeiro país do futebol, mas não fique muito certo disso. Afinal, o futebol, no Brasil ou na Inglaterra, é uma caixinha de surpresas.


PRORROGAÇÃO:
Vou até Nottingham, terra do famoso xerife que nunca conseguia prender o Robin Wood. O time da casa, N.Forest, enfrenta o Leeds (ver crônica "Duelo na Terra de Robin Hood", ainda a ser postada neste blog). Pois bem, avisto um torcedor devidamente trajado nas cores do Leeds (amarelo e branco), mas estranho o fato dele estar sentado com um cachorro a seus pés. O animal era um cachorro-guia. O sujeito era cego...


A PRÓXIMA CRÔNICA, "Kia e a Liga dos Magnatas", será postada na 3a. feira, 9 de outubro

15 comentários:

Antonio Oswaldo Cruz disse...

Caro Alvito, é com gosto e, confesso, com uma pontinha (ok, ok, PONTONA!!!!) de inveja que leio essas suas linhas escritas aí na distante Albion sobre este esporte rude e cativante. Estou sedento por mais, muitos mais (e fotos tbem, se puder, envie para meu email). Grande abraço. Antonio.
PS: Conseguiu ver Escócia e All Blacks? Eu vi aqui pela televisão. Que massacre!

Observatório da Indústria Cultural disse...

Caro Alvito,
Parabéns pelo blog, está lindo. Embora não seja conehcedora de futebol, ter estudado Nelson Rodrigues eme fez gostar de ler sobre o assunto. Já tinha lido no Estadão e agora achei ainda melhor.
bjs,
Adriana.

Unknown disse...

Caro Alvito,
Que ótimo ler seu trabalho sobre o english football. Lembro-me no histórico curso q vc deu sobre o futebol (huizinga e elias continuam impactantes em minhas análises futebolísticas), onde vc já nos dizia q os ingleses sim merecem o título de pertencerem ao "país do futebol". Após este artigo inicial, espero com ansiedade mais escritos!! Ah, particularmente me interessa os pubs, as apostas (sei q lá é coisa de louco), e,se puder, dá uma passadinha em Manchester e vai ao Old Trafford!(Glory Glory United!). Falow Alvito!
Beno Chang

Leonardo Lusitano disse...

Alvito;

Tô curioso com a próxima crônica, pois gostaria de saber da eficácia desse cão q guiou o cego no estádio: talvez uma "Dolly" canina pudesse guiar os dirigentes cariocas até seus assentos mais-do-que-honrados nas tribunas...

Abraços e parabéns pela iniciativa,
Lusitano.

Amor à Camisola disse...

Caro Marcos, parabéns pelo Blog. Li esta crónica e aquela outra do Forest-Leeds e adorei mesmo! Em grande! Como sabes, prefiro este tipo de escrita e vou estar sempre aqui no teu blog para ler mais. Entretanto, deixo a morada do blog FOOTBALL IDEAS que é dedicado à analise histórica e estatística de futebol, o meu trabalho actualmente. www.footballideas.com
Tenho saudades de viver em Inglaterra e curtir esse futebol tão especial. Um dia estes vou-te visitar! Abraço grande, João Nuno Coelho

joão ayres disse...

GRANDE AMIGO,
SUA INICIATIVA É MARAVILHOSA E SUA CRÔNICA É SIMPLESMENTE FANTÁSTICA.
ACHO MESMO QUE A INGLATERRA TEM LÁ SUAS RAÍZES FUTEBOLÍSTICAS, MAS BOLA NO PÉ MESMO É COM A GENTE AQUI.
A INGLATERRA RESPIRA FUTEBOL E O BRASIL INVENTA E REIVENTA ESTA ARTE DIARIAMENTE.
EXCELENTE ARTIGO AMIGO, EXCELENTE BLOG.

Paulo Gontijo disse...

Prezado Alvito, chego ao seu blog através de um amigo que foi seu aluno na UFF. Em 1998 morei, como aluno intercambista, perto de Oxford. Por causa dos amigos me tornei fã do Oxford United, então na segundona. Frequentei os jogos da campanha desastrosa que acabou por levá-lo a 5a divisão. Este ano, depois de 9 anos ausente da "Pérfida Albion" voltei a assistir a uma partida dos Mighty U´s. Devo dizer que você tem razão. O país do futebol é mesmo a Inglaterra. Num estádio de quinta divisão almocei no Outback, tomei cerveja e fiquei muito bem acomodado. Aqui, na primeira, sofro para ver o Fluminense no maraca.

Unknown disse...

Grande Alvito!!!

Parabéns pela ótima crônica... adorei.
Serei um leitor assíduo deste blog.

Um grande abraço,
Luís Otávio
Gaúcho - UFF Rugby

Romulo Mattos disse...

Parabéns pela iniciativa e pela experiência de vida... Acho que será um ótimo livro. Espero que você não fique aí tanto tempo quanto o Alex Ferguson está à frente do Manchester. Abraços, Romulo.

Catharina Wrede disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Catharina Wrede disse...

Alvito,
sou repórter do site da Revista de História da Biblioteca Nacional, aqui do Rio, e achei esse seu projeto interessantíssimo! Concordo plenamente que o país do Futebol é a Inglaterra!!! Essa nossa certeza aqui no Brasil precisa ser abalada!
Parabéns pelo blog! Vai render uma nota no aqui no site.
À propósito: www.revistadehistoria.com.br

Catharina Wrede

ps: esse é o meu blog pessoal. Se quiser, também dá uma olhada.

Roger Young disse...

I was shown this blog by my wife who is from Rio. I am English and a fan of English football, but we visit Rio once a year, so I also take an interest in Brazilian football and on a recent trip we also went to a game at the Maracana.

I found this blog interesting because it came to same conclusion I have about Brazilian / English football, or rather the difference between their fans. I don’t think anyone in England could honestly say they aren’t envious of Brazil’s international record, or don’t appreciate the way Brazilian teams play the beautiful game, but when it comes to supporting our national team, or even our premier of lower division teams I think English fans are much more involved. When I compare our friends in Brazil to our friends in England, a much higher number in England are more into football - I’m pretty sure the Brazilians friend would win an actual game of football but the English fans spend much more time talking, watching or travelling to see their teams play. In fact the first time (typically) male friends meet up the state of your local or the national team is often the first topic on conversation. Whereas in Brazil I see many more people playing football on the beach, but less watching it on TV when we are out in town.

My wife growing up in Brazil and believing it to be the home of football didn’t initially agree with me, but I think finally conceded I may be onto something when we went to the Euro2004 football tournament in Portugal. We found about 100,000 other English fans had taken over the whole country for a month. In fact the English fans were at least 5 times more numerous than any team in the tournament (including Germany, Italy, France etc) and when we went to see England v France at the Stade de Luz there were at over 50,000 English fans in the stadium and less than 5,000 French fans. In fact when England (again) lost of penalties to Portugal in the quarter finals there were more English fans in the stadium than Portuguese, and they were the hosts!

The national team is one of the number one topics in the workplace, pubs and the newspapers, the internet or on the radio or TV. In fact its often agreed the England football manager’s job is harder than the Prime Minister’s (and since the recently retired Tony Blair earnt about £160,000 a year and the last England manager Sven Goran Eriksson reportedly earnt £4,000,000 a year its probably true, although not unrewarding!). However discussions on the Premier league, referees, foreign players / managers, the FA etc are equally numerous.

To sum it up I have often commented that cricket is still England’s national sport (there is nothing more quintessentially English than cricket), but football is our national past-time. I don’t know what would happen if England won the world cup in my life time, but I know I would certainly want to be in England when / if it ever happened.

Unknown disse...

Caro Marcos,
Parabéns pelo site. Eu não gosto muito de futebol (aliás, de esportes em geral!), mas minha mãe me mandou o link (ela foi orientanda do Kant e do Michel Mise, e soube do site através deles) e eu tive que ler e traduzir pro meu marido (Roger Young, que escreveu uma mensagem pra você) e achei muito legal... Mesmo pra quem não curte estas coisas. Parabéns! Vou recomendar aos amigos. Se você vier a Manchester, está convidado pra uma cerveja conosco com direito a falar de futebol e etc... Com o Roj, claro! Como você deve ter percebido, ele pode falar de futebol sem parar!! :-) Um abraço. Flavia

Unknown disse...

Caro Marcos,
Parabéns pelo site. Eu não gosto muito de futebol (aliás, de esportes em geral!), mas minha mãe me mandou o link (ela foi orientanda do Kant e do Michel Mise, e soube do site através deles) e eu tive que ler e traduzir pro meu marido (Roger Young, que escreveu uma mensagem pra você) e achei muito legal... Mesmo pra quem não curte estas coisas. Parabéns! Vou recomendar aos amigos. Se você vier a Manchester, está convidado pra uma cerveja conosco com direito a falar de futebol e etc... Com o Roj, claro! Como você deve ter percebido, ele pode falar de futebol sem parar!! :-) Um abraço. Flavia

Minha fé é meu jogo de cintura disse...

Fala Alvito! Show de bola seu Blog. Este pode até ser o país do futebol mas nunca vão invocar todos os deuses e orixás possíveis para ajudar na vitória! E, cá pra nós, futebol sem macumba, figa, arruda, santinhos, charutos e outras milongas não é futebol rsrsrs. Tu viu na Bahia agora? O Bahia passou para a fase final da terceirona aos 49 do segundo tempo! No final do jogo tinha um monte de gente desmaiada e enfartada pela arquibancada...era o risco da vida não não fazer mais sentido após a eliminação...Existe relato disso por aí? Se tiver eu posso até pensar e refletir sobre o verdadeiro país do futebol rsrs.
Grande abraço e saudações tricolores (2x0 com direito a gol do showmália rsrs)
Cappelli.