Mentira. Marcela Mora y Araujo não é prima de Diego Armando Maradona. Mas esta jornalista argentina também é craque. Veio aos quinze anos para a Inglaterra, onde estudou e começou sua carreira no rádio. Logo percebeu que seria inapelavelmente escalada para cobrir a América Latina. Sendo assim, escolhe o esporte, pois “era algo agradável de que eu poderia me orgulhar enquanto na política e na economia era tudo nefasto.” Seu envolvimento com o futebol veio de berço: teve um avô que foi jornalista esportivo e desde menina frequentava a Bombonera com sua família. Afirma com voz tranquila: “O Mundial da Argentina foi jogado quando eu tinha 11 anos, Maradona virou um ídolo juvenil quando eu tinha doze anos, ou seja, é algo absolutamente da minha geração... o futebol me acompanhou sempre, na minha vida pessoal e na minha identidade nacional, por toda a vida.” Enquanto tomávamos um café em volta de uma mesa onde se amontoavam dezenas figurinhas de jogadores ingleses colecionadas por seu filho, Marcela concedeu uma entrevista exclusiva ao nosso blog (que marra, hein!).
Trabalhando para a BBC em 1994, fez uma importante reportagem sobre os hinchas (torcedores organizados) do Boca Juniors. Conseguiu entrevistar José “El Abuelo” (“Vovô”) Barritta o mítico líder da Barra Brava do Boca. Descobriu que ele comandava uma rede muito bem organizada que explorava de tudo no bairro, desde a venda de ingressos para os jogos até o tráfico de drogas, passando pela venda de refrigerantes e sanduíches no estádio. Mas a organização liderada por José Barritta também fazia caridade, ajudava crianças com necessidades especiais, enfim, criava uma rede clientelística tão forte que quando ele morreu em 2001, com 48 anos, o seu enterro foi um verdadeiro acontecimento.
Marcela estava com Barrita durante o clássico Boca x River, vencido pelo último por dois a zero. Acontece que depois do jogo, longe do estádio, dois torcedores do River foram assassinados, um com 19, outro com 23 anos. E nos muros de Buenos Aires apareceu a seguinte pichação: “Boca 2x2 River”. Ou seja: um torcedor do River morto para cada gol. Três anos depois “El Abuelo” foi preso e condenado a treze anos de prisão, embora no momento do crime ele estivesse em outro lugar da cidade com Marcela e dezenas de outros torcedores. As autoridades argentinas, pressionadas pela opinião pública para que dessem um basta no problema da violência das torcidas lançaram mão da "Associação Ilícita", um recurso jurídico da época da Ditadura Militar para prender José Barrita, mesmo que nunca tenham comprovado a sua participação nas mortes dos torcedores do River Plate. Esse mesmo tipo de malabarismo legal foi utilizado na Holanda contra o hooliganismo das torcidas de Ajax e Feyenoord.
Mesmo assim, “El Abuelo” se fazia presente em La Bombonera. “La Numero Doze” é como se chama a hinchada do Boca, um nome que reconhece a importância do grupo como uma espécie de 12o. jogador. Pois bem, enquanto “El Abuelo” esteve preso, graças à utilização de uma lei da época da Ditadura Militar, a Barra Brava do Boca deixava um vasto espaço vazio na arquibancada para simbolizar o lugar que deveria ser ocupado pelo seu líder (ver foto acima). “A partir de este incidente”, afirma Marcela, “passei a entender que o futebol reflete tudo o que ocorre na sociedade.”
Na Inglaterra ela fez várias reportagens sobre hooligans e tem uma interpretação extremamente original sobre o declínio da violência nos estádios ingleses. Não nega ter havido uma “revolução” no futebol inglês com a entrada do dinheiro da televisão a cabo (Sky), o pesado investimento no controle e na repressão, o aumento exorbitante dos preços e o fim dos terraces (local atrás do gol onde os torcedores mais fanáticos assistiam ao jogo de pé). Tudo isso foi importante, diz ela, mas há algo que os jornais não noticiam. Trata-se de uma transformação na cultura juvenil. Na década de 90 os jovens ingleses passaram a reunir-se ilegalmente em lugares descampados onde ouviam música e consumiam ecstasy. Essas festas que chegavam a reunir 4 a 5 mil jovens apresentavam, todavia, um problema difícil: como reunir toda essa gente sem despertar a atenção da polícia? Foi aí, segundo Marcela Mora y Araujo, que entraram em campo os hooligans, que já dispunham de redes subterrâneas informais e do know-how para enganar os homens da lei. Os caras passaram a fazer a segurança das raves, como eram chamadas essas festas. Depois de passar a 6a. feira à noite dançando e conversando com hooligans de outros clubes, quando chegava o sábado à tarde não havia mais clima para baterem uns nos outros. A hipótese de Marcela, além de extremamente original, chama a atenção para uma questão crucial: a violência das torcidas não diz respeito ao futebol somente e sim às formas de lazer da juventude.
Hoje em dia, Marcela mantém um blog no The Guardian (http://ww.guardian.co.uk/ ) para o qual escreve regularmente sobre futebol argentino e sobre os jogadores latino americanos que disputam a Premier League. Para chegar a ser uma jornalista esportiva respeitada e conhecida como hoje, o caminho de Mora y Araujo não foi tranquilo. Quando ainda trabalhava na BBC, o colega que era responsável pela parte de esportes teria que ausentar-se por dois meses. Marcela ofereceu-se para substituí-lo mas tem o seu pedido negado por ser mulher. Recorre formalmente a seus superiores e participa de um concurso anônimo organizado pela empresa para decidir quem assumiria o posto. Fica em primeiro lugar mas é obrigada a aceitar trabalhar em parceria com um colega. Aos poucos, foi granjeando seu espaço e acabou sendo a diretora da cobertura de uma Copa do Mundo, além de ter feito um documentário sobre as duas copas do mundo ganhas pela Argentina (1978 e 1986) e o contexto político. Participou inclusive do filme oficial da Fifa sobre as copas do mundo.
Ela exemplifica a principal diferença entre o futebol inglês e o futebol argentino a partir do termo gambetta, originário do italiano e segundo Marcela absolutamente intraduzível para os súditos da Rainha. Mas isto será tema da nossa crônica da semana que vem, quando continuaremos a conversa com Marcela Mora y Araujo.
Um comentário:
Esperarei a continuação na próxima semana, então.
A publicação desta terça foi bastante empolgante para mim. Aqui no Brasil as mulheres ainda são muito rejeitadas quando o assunto é futebol. No jornalismo sobre futebol, como jogadoras, como assistentes ou como juízas, nossa participação ainda é muito restrita e o cenário é muito dominado pelos homens.
Outro dia notei, por exemplo, lendo a última página do jornal "O Lance", que todos os profissionais responsáveis pelo jornal eram homens. Quando há a possibilidade de inserção das mulheres nessa área, elas são altamente julgadas. Realmente é muito estimulante ver que Marcela está conseguindo quebrar essa barreira.
Marina.
marinagerasso@gmail.com
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