segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Malandros Otários (outra crônica inédita)

Malandros otários


Se malandro soubesse como é bom ser honesto, seria honesto só por malandragem”


Jorge Ben


A primeira vez que aconteceu eu tomei um susto. Depois de quase quatro meses na Inglaterra, assistindo a dezenas de jogos de várias divisões diferentes, alguns jogos femininos, rugby e até cricket, eu ainda não tinha visto aquilo. Naquela tarde, antes do jogo começar, eu vi o juiz e os bandeirinhas serem vaiados pela primeira vez. Estava acostumado a ir a jogos de futebol no Brasil, onde os homens de preto sempre são saudados com uma estrondosa vaia antes de terem tempo de entrar em campo. Sem falar nas homenagem habituais à progenitora de vossa excelência durante o jogo propriamente dito. Mas na Terra da Rainha é bem diferente.

É claro que os juízes são muito criticados pelos comentaristas por suas falhas e os torcedores também não costumam perdoá-los. Ou seja, é claro que por aqui também se xinga o juiz, até com muita veemência embora sem tanta frequência. O humor inglês se faz presente nessa hora. Quando fui assistir a um jogo do Doncaster Rovers contra o Leyton Orient, meu amigo John Coyle, fanático torcedor do “Donnie”, enfurecido com a atuação do juiz, gritava frases que arrancavam risos da turma em volta. Suas broncas iam desde o mais tradicional: “Are you blind?” (“Você está cego?”), até o mais criativo “Why don't you put a blue shirt?” (“Por quê você não veste uma camisa azul?” - cor do time adversário); sem falar em reclamações habituais: “What does it take for us to get a penalty?” (“O que tem que acontecer para você marcar um pênalti a nosso favor?”) ou “When are you going to take the yellow card from your pocket?” (“Quando é que você vai tirar o cartão amarelo do bolso?”). Até mesmo durante jogos de rugby, onde o público é bem mais contido e educado nas suas manifestações, já vi o juiz quase ser vaiado por uma marcação durante o jogo.

Agora, vaiar o juiz à entrada, eu nunca tinha visto. É claro que toda a regra tem a sua exceção. Se há um lugar na Inglaterra onde o juiz haveria de ser vaiado era ali. Eu estava em Millwall, bairro de Londres famoso às avessas. O time da casa, o Millwall F.C., é bem mais conhecido pelos seus hooligans - dos quais ainda falaremos em outra crônica, do que pela boa qualidade do futebol ou pelas escassas conquistas. Mas eu vou falar de Millwall outro dia, a crônica de hoje é sobre malandragem.

Malandragem? É que a vaia ao juiz chamou a minha atenção para uma das maiores diferenças em termos da forma pela qual o futebol é jogado e apreciado no Brasil e na Inglaterra. O caso do goleiro brasileiro Dida, ocorrido no início de outubro de 2007, ilustra bem o que estou querendo dizer. Em um jogo da Champions League entre a sua equipe, o Milan e o clube escocês Celtic, um torcedor de 27 anos, Robert McHendry, entrou em campo quase ao final da partida. Embora seu time, o Celtic, estivesse vencendo por 2x1, McHendry invadiu o gramado e correu na direção de Dida, tocando no ombro do goleiro e dizendo “Bad luck, Dida” (“Azar, Dida”). A primeira reação de Dida foi correr atrás do torcedor, para depois desabar em campo, do qual saiu carregado na maca. A UEFA, depois de examinar o video-tape do incidente, multou o Celtic e puniu Dida com uma suspensão de dois jogos, por desrespeitar regras que dizem respeito à “lealdade, integridade e espírito esportivo”. Em suma: por ser um mau ator. Até aí, todo mundo sabe.

O incrível é que a reação das pessoas com quem conversei por aqui foi extremamente forte. Dois famosos sociólogos do futebol com quem conversei, desprezaram diferenças culturais e simplesmente se disseram enojados com o comportamento de Dida. A partir daí eu comecei a reparar que o público nas arquibancadas é absolutamente implacável diante da menor possibilidade de “simulação”, ou seja, de um jogador fingir ter sido atingido por um adversário ou mesmo exagerar na gravidade da falta, contorcendo-se na grama. A torcida em uníssono começa a gritar a plenos pulmões “Cheat, cheat!” (“Enganador”). Ou então, no caso da famosa propensão dos atacantes em voarem dentro da área: “Dive, dive!” (“Atirou-se”). É o suficiente para aquele jogador passar a ser perseguido por vaias durante o resto da partida.

Outra diferença é que o comportamento de juízes e jogadores tende a ser (o que equivale a dizer que nem sempre é) mais discreto e equilibrado. Não é tão comum ver os jogadores “peitarem” o juiz e, por outro lado, os juízes dão cartões amarelos e vermelhos muitas vezes sem nem levantar o braço direito, em gestos bem menos espalhafatosos e histéricos que seus colegas sul-americanos. O jogo é bem menos truncado, porque as faltas são em média 25 por jogo, enquanto no Brasil não é incomum termos 40, 60 e até 80 faltas por jogo. É bom notar também que a palavra para “juiz” por aqui é referee, ou seja, árbitro, ao contrário do nosso “juiz”, que estabelece uma interessante e nada elogiosa analogia (para ambos os lados) entre os sopradores de apito e nossos magistrados. Mas agora a pelota do raciocínio já está saindo pela linha de fundo. Voltemos ao mais importante.

No Brasil faz parte da “malandragem” cavar uma falta ou buscar a expulsão do adversário através de uma pantomima. Não digo que isso não ocorra na Inglaterra, mas os torcedores (e os comentaristas) vêem isso como absolutamente inaceitável. Pode ser um resquício do ethos do amadorismo, em que até mesmo treinar era visto como uma forma de desvio em relação ao “fair play”: os dois times tinham que se enfrentar sem preparar-se, que vencesse o melhor. É claro que estamos muito longe dessa época, e o futebol já é profissional na Inglaterra há mais de um século. Mas acho que essa atitude tem relação com o fato do juiz não ser normalmente vaiado ao entrar em campo. É algo que tendo a explicar pensando em questões maiores.

Por questões maiores entendo a própria cultura política e as diferenças em termos de cidadania nos dois países. A tradição de um Estado autoritário e centralizador, desvinculado da sociedade, torna qualquer autoridade suspeita: “todo político é corrupto, todo policial é bandido e todo o juiz de futebol é ladrão”. Todo representante da lei é culpado até prova em contrário, o que é apenas o contra-dom ofertado por um povo que – exceto uma elite privilegiada, é tratado como cidadão de terceira classe. O sistema político da Inglaterra, um parlamentarismo que dura vários séculos sem solução de continuidade, tem muito mais credibilidade junto a seus cidadãos. Os policiais andam de cabeça erguida e desfrutam de relativo respeito. E os juízes de futebol são vaiados e xingados, mas só depois do jogo começar...

3 comentários:

Unknown disse...

Achei muito interessante o tema da crônica.
Acho curioso como aqui no Brasil a torcida realmente tem algumas reações bastante (mas por vezes nem tanto) distintas da torcida inglesa.
Gostaria de destacar o assunto relativo a questão do caso Dida. A diferença das reações das torcidas de lá e daqui fica um pouco explícita nesse episódio. Aqui no Brasil a tendência dos jogadores ao fingir e criar situações na tentativa de induzir a atitude do juiz é bastante recorrente. Só que o mais interessante é que uma reação por parte da torcida com esse tipo de acontecimento já não é mais tão recorrente assim. Nas torcidas brasileiras em geral, costumamos fazer algumas reclamações. Porém muitas vezes já há um sentimento de maior conformidade. Em certas ocasiões o torcedor não reclama e fica somente aguardando o retorno da partida. Quando muito lança alguns comentários com o torcedor ao lado ou solta um grito sozinho, que não chega aos ouvidos de quem está em campo. Nesse sentido as torcidas inglesas já demonstram mais indignação com esse tipo de postura dos jogadores.
Já com relação a "peitar" o juiz, talvez isso tenha alguma ligação justamente com a questão levantada na crônica, no que diz respeito a maneira distinta com que encaram o mediador de uma partida na Inglaterra e no Brasil. Ou então pode-se atribuir quem sabe aos nossos nervos aguçados quando falamos de futebol (não que os brasileiros se envolvam mais ou menos em uma partida que os ingleses, mas as demonstrações desse envolvimento são bem mais calorosas por aqui). Daí viria talvez uma postura de tentativa do jogador de impressionar a torcida e mostrar um envolvimento e um compromisso com a camisa que ele está vestindo. É claro que esse tipo de demonstração pode ser também pura malandragem para ganhar o apoio desses torcedores, não estando essa postura relacionada necessariamente a um real comprometimento com o time.

Marina.
marinagerasso@gmail.com

Romulo Mattos disse...

Pois é, em virtude das seguidas simulações, o português Cristiano Ronaldo – que deve ter visto muita novela da Rede Globo na terrinha – tornou-se o jogador mais perseguido da Inglaterra, apesar do seu excelente futebol. Trata-se de um sujeito que é vaiado antes de o jogo começar – embora não se possa esquecer a pressão que ele fez para o juiz expulsar o Rooney, na última Copa do Mundo.

Pedrinho, vascaíno e professor disse...

Alvito, adorei este final. Acho que a revolta contra a autoridade vai por aí mesmo. Sinceramente, como professor, não foram poucas vezes que eu já "entrei em campo" vaiado... E não adianta sair dando cartão vermelho pra torcida...