terça-feira, 4 de março de 2008

Blue Square Premier, ou: "feliz daquele que sabe sofrer"



Car@s leitor@s , tenho boas e más notícias. A boa notícia é que há uma ótima editora interessadíssima em publicar A Rainha de Chuteiras. Assim que eu terminar de escrever eles irão apreciar a proposta, mas as chances são muito boas. O problema é que não posso postar todo o conteúdo do livro no blog... Gostaria de agradecer muito todo o apoio de vocês, as generosas mensagens e, principalmente, o fato de entrarem aqui para ler as crônicas. Espero que entendam minha sinuca de bico. Aqueles que estiverem interessados em receber uma mensagem - e apenas uma - avisando acerca da publicação do livro, por favor mandem um e-mail para arainhadechuteiras@gmail.com . E lá vai a última crônica, por enquanto...

um grande abraço e muito obrigado a tod@s,

Marcos Alvito


Blue Square Premier, ou: “feliz daquele que sabe sofrer”

O verso, que parece zen-budista, é do inigualável Nelson Cavaquinho: “feliz daquele que sabe sofrer”. Só assim para explicar o que aconteceu naquela partida. Mas vamos começar do começo. Joguinho da 5a. Divisão: Oxford United versus Rushden & Diamonds. Dia de semana e à noite. Pra piorar, o jogo não era em Oxford, onde eu estava morando e sim no Nene Park, a duas horas de distância. Espero o ônibus do clube no estacionamento de um rink de patinação. Por falar em gelo estava fazendo bastante frio naquele fim de tarde. Eu embarco no ônibus com mais duas dúzias de infelizes torcedores do Oxford United.
Parêntesis: o Oxford United é uma equipe com alguma tradição, que já jogou algumas temporadas na Primeira Divisão e até ganhou a Milk Cup em 1986. Nunca ouviram falar? Pois a Milk Cup (“Copa do Leite” pra quem se amarra em uma tradução) era o nome dado à competição disputada somente pelos 92 clubes da Primeira Divisão – que à época tinha o pouco imaginativo e nada marqueteiro nome de Primeira Divisão mesmo. Pois é, o Oxford United foi gloriosamente sagrado campeão naquele ano de 1986. E de lá pra cá... Encurtando a história, há duas temporadas que os Yellows vêm comendo o pão que o diabo amassou na 5a. Divisão, que hoje ostenta o portentoso nome de Blue Square Premier.
No começo da temporada 2007-8, ou melhor, antes da bola rolar, o Oxford United era favorito a ser promovido e as casas de apostas estavam pagando apenas 2 por 1. Como eu sei? Pelo menos só apostei duas libras... Enfim, começa o campeonato e o Oxford vai de mal a pior. A cada semana, imprensa, técnico, jogadores e torcedores pensavam: daqui pra frente vamos vencer todas, sábado vai começar nossa recuperação. Chegava o sábado à tarde e neca de pitibiriba: derrotas acachapantes, um empatezinho ali outro aqui e muito de vez em quando uma vitória suada. A temporada começou em agosto e lá naquele primeiro dia de novembro o jogo contra o Rushden & Diamonds parecia ser a última chance: “é agora ou nunca”, “vamos com tudo”, “ninguém nos segura” e por aí vai. Como teria dito Garrincha certa vez depois de ouvir a preleção do técnico, cheia de planos e táticas mirabolantes: “já avisaram isso tudo pro outro time?”
O jogo era à noite e no meio da semana para poder ser televisado pela Setanta Sports, uma espécie de segunda divisão de canal a cabo que transmite aquilo que sobrou da Sky Sports. A notícia do televisionamento não agradou aos torcedores do Oxford. Sabe como é. Torcedor que se preza é supersticioso. E mesmo não sendo, seria coincidência que os seis jogos anteriores transmitidos pela Setanta tivessem acabado em derrota pra nós? Sim, pra nós, caro leitor, pois agora vou confessar o inconfessável: eu havia virado torcedor dos Yellows.
Era em meio desse turbilhão de emoções que íamos no ônibus, ouvindo uma daquelas rádios de esportes em que o locutor parece que engoliu um microfone. O ônibus até que estava meio vazio, mas ao chegar lá a surpresa: havia mais de 400 torcedores do Oxford, o que para um time de 5a. Divisão com parcas esperanças de ser promovido, uma noite fria no meio da semana e um jogo transmitido pela Setanta ... Jogando fora, o United entrou com seu belo uniforme todo azul e foi saudado calorosamente por nós.
Não havia dúvida de que o destino histórico do clube era jogar na primeira divisão ao lado de Arsenal, Manchester United, Liverpool e outros menos cotados. Se estavamos ali no Nene Park naquela fria noite de novembro era por causa de uma recorrente falta de sorte, de algumas terríveis coincidências, do aquecimento global e da Guerra do Iraque. Assim que a bola rolasse nossa superioridade insofismável seria confirmada com uma goleada arrasadora e humilhante. Rushden & Diamonds: “Who are you?”, cantamos todos a plenos pulmões.
Com apenas onze minutos o placar já estava 2x0. Para eles. Mas nós continuavamos confiantes: “Vamos vencer de 3x2”, cantamos para lembrar aos torcedores do Rushden & Diamonds quem mandava ali. E logo mudamos para “Vamos vencer de 4x3” quando ainda antes do fim do primeiro tempo tomamos o terceiro gol. No intervalo, o repórter da Setanta Sports que gravava ao vivo a pouca distância da nossa torcida ouviu um corinho: “Você é uma sobra da Sky, você é uma sobra da Sky”. Quiçá alguns de nossos torcedores mais pessimistas já estivessem pensando: sete partidas transmitidas por eles, sete derrotas...
Começa o segundo tempo e tudo muda: nosso time mostra outra disposição, outra atitude dentro de campo. Nosso técnico deve ter feito um milagre no vestiário. Pena que o Rushden & Diamonds faz 4x0 e não demora muito 5x0. Até cantamos que iríamos vencer de 5x4 e em seguida de 6x5. Mas logo resolvemos mostrar nossa incomparável originalidade. E cantamos tão simplesmente: “Queremos seis! Queremos seis!”. Sem esperar que nossa poderosa equipe marcasse ao menos o que outras torcidas, acostumadas à derrota, costumam chamar de “gol de honra” ou “gol de consolação”, o que aliás não ocorreu naquele dia, inventamos uma realidade paralela. Comemoramos um gol imaginário. “Vamos fazer de conta que marcamos um gol”, gritou um gaiato. Em seguida levantamos, abrimos os braços e gritamos “Goal, goal”. A festa começava ali: com os ânimos exaltados por tão belo tento, dezenas dos nossos torcedores subiam e desciam as arquibancadas fazendo um trenzinho e cantando com a alegria que só o futebol proporciona: “Vamos dançar a conga, vamos dançar a conga”.
“Feliz daquele que sabe sofrer!”

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

O bom humor do primo pobre

O bom-humor do primo pobre

Há males que vêm para bem, ensina a sabedoria popular. O futebol escocês pode ser considerado um primo pobre do futebol inglês. O “mercado” escocês tem dimensões diminutas, com uma população igual à da cidade do Rio de Janeiro. Isso não representa um décimo da população inglesa, sem falar na diferença de poder aquisitivo. Este quadro impõe condições financeiras franciscanas se comparadas à milionária Premier League inglesa. Por um lado, isso faz com que os clubes escoceses tenham dificuldades em competir de igual para igual não somente com os clubes ingleses mais importantes mas também com os poderosos clubes italianos, espanhóis e alemães. Essa relativa “pobreza” tem seus benefícios em termos de ingressos ainda acessíveis à grande maioria dos torcedores e por dar mais chances aos jogadores escoceses diante de uma legião estrangeira bem menor e menos qualificada do que a da Premier League inglesa.
Mas esses assuntos já foram tratados na crônica “Visitando o Paraíso”. Agora gostaria de tratar do senso de humor escocês. Ninguém fala nele. A Escócia é sempre lembrada pelo trio whisky, homens de saias (kilts) e castelos. Comparado com o humor inglês, famoso pela sutileza e ironia, o humor escocês é bem mais direto e, pelo menos para um brasileiro, extremamente engraçado. Um dos meios de entrar em contato com um país é a leitura dos jornais diários. Assim que cheguei a Glasgow para assistir a Celtic versus Hearts, comprei o The Herald e, como sempre, fui direto ao caderno de esportes. Na última página havia a coluna de um jornalista com o nome mais escocês possível: Hugh MacDonald. Na semana anterior, tinha havido um enorme debate na imprensa inglesa, condenando o plano da Premier League de realizar uma rodada inteira em cinco cidades no exterior a partir da temporada 2010-11. Muitos consideraram isso o fim da picada (inclusive eu, que pretendo escrever uma crônica a respeito). MacDonald não perdeu a chance de ironizar a descoberta dos colegas de que o futebol havia se tornado uma máquina de fazer dinheiro. A começar pelo título do seu artigo: “Why football has no soul left to sell” (“Porque o futebol não tem mais alma para vender”). E no decorrer do artigo ele alfinetou:

“Alguns colunistas lamentaram o fato de que a Premier League vendeu a alma do jogo. Alma? Do futebol? O Diabo não iria querer a alma do futebol nem que você oferecesse a ele pagar em suaves prestações.”

Quanto à acusação de cobiça feita aos clubes, MacDonald também não perdoa:

“Ora, o negócio dos clubes é fazer dinheiro. Uma pista: eles cobram na entrada. E cobram com o entusiasmo de guerreiros mongóis em uma tarde de pilhagem sem limites, com direito a serviço de bar e buffet coma-o-que-puder, servido por mil virgens vestais.”

É ou não é bem diferente do humor inglês? Outro colunista do The Herald, Kenny Hodgard, reclamava do excessivo controle imposto aos torcedores dentro do estádio:

“Quem se levantar durante o jogo é visto como alguém que acaba de soltar um peido entre dois movimentos de um concerto de música clássica. Você não pode beber, você não pode fumar e nem mesmo duvidar da sexualidade do juiz.”

Por falar em jogo, naquela tarde, antes de entrar no Celtic Park comprei um fanzine chamado “Not the view”. Vejam só como os editores se apresentam:

“Essa porcaria é feita por torcedores do Celtic que não são os maiorais nem tampouco são inteligentes. (...) É produzida em um computador Mac da Apple que tem vontade própria mas o amamos assim mesmo.”

Se eles pensam isso deles mesmos, imaginem o que eles dizem dos torcedores do arqui-inimigo Rangers? “Bluenoses” (narizes azuis), Orcs (viram o filme “Senhor dos Anéis”?), hunos e animais são as formas carinhosas deles se referirem aos torcedores do Rangers. Lamentam que as autoridades de Barcelona estejam predispostas contra os escoceses depois da mal comportada visita dos narizes azuis, bebendo pelas ruas e urinando por todo o lado.
Também há espaço para comentar acerca de dois jogadores poloneses que foram dispensados pelo clube. Maciej Zurawski, um jogador de seleção e de boa técnica, é lembrado por sumir nos jogos importantes, só jogando bem contra pequenos. Seu compatriota Jiri Jarosik, diz o fanzine, era o contrário: jogava bem nas partidas contra Milan e cia e simplesmente desaparecia contra o Saint Mirren ou o Motherwell. Acerca de Jarosik, eles lembram uma tirada implacável do técnico do Celtic, Gordon Strachan. Durante a já tradicional conferência de imprensa para apresentar as novas contratações, o próprio Jarosik descreveu a si próprio como um meio campista capaz de chutar e marcar gols com ambas as pernas. Strachan foi ácido com seu novo jogador diante dos repórteres: “Maravilha, então você é ainda melhor do que eu pensava”.
A melhor de todas estava no Sunday Herald, com os resultados da rodada de sábado e comentários acerca dos jogos. Era a matéria acerca do jogo Falkirk 4x0 Saint Mirren. Três dias antes o pequeno Saint Mirren tinha eliminado o favorito Dundee United da Copa da Escócia, jogando fora de casa. Eu vira o jogo pela televisão e ficara admirado com a elasticidade e os reflexos de Mark Howard, o goleiro do Saint Mirren que garantiu a mirrada vitória por 1x0. Na tarde de sábado a sorte de Howard mudou e ele papou dois frangos na goleada sofrida diante do Falkirk. Vejam só o que o técnico da equipe, Gus McPherson (tinha que ser um Mc alguma coisa), disse sobre o seu goleiro diante da imprensa escrita, falada e televisada:

“Pois é, na 4a. feira todos os comentaristas o aplaudiram por uma atuação fenomenal e hoje ele cometeu uma série de erros. Eu nunca entendi porquê os goleiros escolhem essa posição, mas quem escolheu ser goleiro foi ele”

O mesmo McPherson fez uma piada involuntária sobre sua capacidade crítica como técnico. Depois de ver seu time tomar de quatro ele teve a coragem de dizer o seguinte: “Acho que jogamos razoavelmente bem. Eu não acho que tenha havido uma grande diferença entre os dois times.”
Só quatro gols...

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Visitando o Paraíso

Depois de uma semana em branco, voltamos a publicar no blog. Para compensar, uma crônica inédita sobre meu primeiro jogo de futebol na Escócia. A rainha de chuteiras, saias e gaitas de fole...

Visitando o Paraíso

Ainda hoje, a zona leste (East End) de Glasgow é a área mais pobre da cidade, um árido cenário de conjuntos residenciais e ruas com aspecto de abandono. Mas é ali que fica o Paraíso. Pelo menos para os torcedores do Celtic Football Club, que vêem Celtic Park, seu estádio, como um Céu na Terra. A terminologia bíblica não é coincidência: o clube foi fundado por Irmão Walfrid, um frei marista nascido na Irlanda. Sua família fora forçada a imigrar para a Escócia pela Grande Fome que atingiu a Irlanda na metade do século XIX. Calcula-se que um milhão de irlandeses morreram e mais um milhão abandonou a terra natal em busca da sobrevivência. Os que podiam iam para a América ou Canadá. Os mais pobres – dentre os quais os católicos eram a maioria – iam para os centros industriais mais importantes da Grã-Bretanha: Londres, Manchester e, por fim, Glasgow.

Ao chegar, os irlandeses, em sua maioria ex-camponeses, eram mão-de-obra barata, fazendo os serviços mais pesados e desagradáveis nas minas de carvão, nos portos e nas fábricas. Viviam amontoados em cortiços, sem condições sanitárias, alimentando-se mal e vestindo-se com trapos. Seus empregadores ingleses tinham uma opinião ambígua sobre eles, como lembra o historiador E.P.Thompson. Por um lado, viam os irlandeses como uma força bruta ideal: bem-humorados, generosos e impulsivos, dispostos ao trabalho pesado ao ponto de arruinarem a própria saúde. Mas eram considerados mais violentos e irritadiços, faladores, indisciplinados e incapazes de trabalhos mais qualificados ou complexos. Em suma, eram vistos como menos civilizados, moralmente ou até racialmente inferiores aos ingleses e aos escoceses.

No final do século XIX, Glasgow era uma potência industrial: seus estaleiros fabricavam os maiores navios do planeta, ali eram feitas as locomotivas a vapor usadas em todo o Império Britânico, sem falar na florescente indústria têxtil. Muitos estabelecimentos ficavam no East End, aproveitando a mão-de-obra barata dos imigrantes irlandeses. O East End era um verdadeiro gueto irlandês em Glasgow, cuja sociedade era não só protestante como também fortemente anti-católica. Católico era sinônimo de pobre, atrasado e, não menos importante, de irlandês. Os pastores protestantes iniciaram um trabalho “civilizatório” oferecendo sopas aos pobres irlandeses em troca da conversão religiosa. A Igreja Católica contra-atacou e o Irmão Walfrid começou a servir sopa às crianças do East End. A taxa de mortalidade do bairro era assustadoramente alta, muitas crianças morriam de fome ou doença antes dos cinco anos. Inspirado no exemplo do Aberdeen, um clube de futebol católico fundado em Edimburgo, Irmão Walfrid funda um clube de futebol com o intuito de financiar a alimentação dos filhos dos imigrantes irlandeses do East End. Ele logo teve o apoio de alguns empresários locais e políticos interessados na população irlandesa. Em 1888, nascia o Celtic Football Club.

Quis o destino que o primeiro jogo disputado pelo novo clube fosse contra o Rangers, clube que iria tornar-se seu arqui-inimigo em uma rivalidade de conotações religiosas e políticas explosivas. O Celtic ganhou de 5x2, diante de um público de 2.000 pessoas. Jogaram no primeiro Celtic Park, um estádio construído em mutirão pela população do bairro, o que demonstra o sucesso da iniciativa de Irmão Walfrid. Embora o Celtic tenha sido fundado para ajudar a população católica do East End, jamais foi pensado como um clube exclusivamente católico ou anti-protestante. O próprio nome, Celtic, era uma menção explícita a uma origem cultural compartilhada por irlandeses e escoceses. O Celtic recrutava os seus jogadores predominantemente entre os imigrantes irlandeses (e católicos), com os padres católicos servindo de olheiros espalhados por toda a Escócia. Mas nunca proibiu a contratação de jogadores protestantes e vários dos seus ídolos foram não-católicos.

O mesmo não aconteceu com o Rangers, que construíu uma identidade anti-católica e anti-Celtic. A proibição à contratação de jogadores católicos foi um dogma de ferro, só quebrado definitivamente há menos de 20 anos, em 1989. A independência da Irlanda (Eire) em 1921 e as disputas entre católicos e protestantes na Irlanda do Norte – que permaneceu sob o controle inglês, apimentaram a disputa Celtic x Rangers e fizeram dos jogos entre os dois verdadeiros barris de pólvora, com incidentes violentos sendo registrados já em 1896. De um lado o Rangers: escocês, protestante e favorável à união com a Inglaterra. Do outro o Celtic: irlandês, católico e rebelde diante da dominação inglesa. O Rangers de camisa azul e calção branco, cores da bandeira escocesa. O Celtic, de camisa verde e branca (listras horizontais) e calções brancos, duas das três cores da bandeira da irlanda. Sem falar no escudo, o tradicional trevo de quatro folhas irlandês. [ou celta?]

Os dirigentes do Rangers e do Celtic e até estimularam essa rivalidade, extremamente lucrativa para os cofres dos dois clubes. Até hoje o maior público do futebol escocês é um Celtic x Rangers com mais de 118 mil pessoas disputado em 1939. Começou até mesmo a haver suspeitas de que Celtic e Rangers armavam empates para obrigar à realização de partidas extras. Foi isso que deu ao clássico o nome de “Velha Firma”. Um cartum publicado na imprensa mostrava um homem carregando um cartaz que dizia: “Apoie a Velha Firma: Celtic x Rangers Companhia Limitada”.

Ainda não consegui assistir a um Celtic x Rangers, mas pelo menos fui ao Paraíso, quer dizer, ao Celtic Park, ver o time de Irmão Walfrid contra o Hearts de Edimburgo. Era um jogo importante para o Celtic, que estava quatro pontos atrás do líder Rangers. O Hearts é um clube tradicional, mas que vive uma situação inquietante: há poucos anos foi comprado por um irrequieto milionário lituano chamado Vladimir Romanov. Apesar de reerguer as combalidas finanças, Romanov dirige o clube com mão-de-ferro, despedindo e contratando técnicos da noite para o dia e, dizem, até escalando o time. Em 2006, depois de ver seu time perder em casa para o Kilmarnock por dois a zero, ameaçou por seus jogadores à venda se não ganhassem a partida seguinte. Além disso, ele tem uma queda por jogadores lituanos que nem sempre beneficia o clube dentro de campo e fora dele levanta suspeitas de transações ilícitas. Afinal, Mr. Romanov é dono de um time na Lituânia e é influente em pelo menos metade dos times da liga local. O Hearts estava na parte de baixo da tabela, em oitavo lugar, 22 pontos atrás do Celtic. Mas na visão do meu amigo escocês Raymond Boyle, é um time perigoso e imprevisível, que tanto poderia jogar maravilhosamente bem e derrotar o Celtic quanto tomar uma goleada.

Vamos para o East End no carro de Raymond, professor da Universidade de Glasgow. Quando vejo que seu carro é verde, brinco com ele. Raymond responde bem-humorado dizendo que seria incapaz de ter um carro azul ou, se o tivesse, pelo menos iria mandar pintar umas tiras brancas. Eu me encontrara com ele para almoçar antes de irmos para o jogo. Naquela manhã eu chegara em Glasgow de avião e ficara admirado com a quantidade de torcedores do Celtic que vira pelas ruas, muitos deles irlandeses que haviam viajado de avião como eu para aquele jogo.

Ao chegarmos no East End, havia um mar de camisas e cachecóis verde e brancos. Em um pub de esquina, um grupo de torcedores do Celtic empunhava alegremente seus copos de cerveja. Estavam aproveitando, porque o consumo de álcool é proibido nos estádios escoceses desde 1980, proibição que persiste depois de 28 anos. Embora as autoridades escocesas já estivessem estudando esta medida desde 1977, a gota d'água (sem trocadilho) foi um conflito de grandes dimensões ocorrido em um jogo entre Rangers e Celtic em 1980. O aspecto pouco cuidado do bairro, o clima de festa, os trailers vendendo hamburgers, a grande quantidade de ambulantes e suas barraquinhas com pins, camisas e cachecóis do Celtic, tudo isso me lembrou um pouco o Brasil.

As semelhanças param aí, porque o Celtic Park é um estádio moderno, que foi reconstruído em 1988, ano do centenário do clube. Para estabelecer um elo simbólico com a tradição, uma parte do antigo estádio foi preservada e incorporada ao novo. Em frente a esse setor, há uma estátua de Irmão Walfrid, que foi feita somente com dinheiro arrecadado pelos torcedores, sem nenhuma ajuda do clube. Irmão Walfrid, com sua expressão tranquila e a Bíblia no colo, parecia deslocado em meio ao clima efervescente que precede uma partida de futebol.

Havia muitos jovens e o público era aparentemente da classe trabalhadora. Na conversa que tivemos durante o almoço, Raymond sublinhou que na Escócia o público de futebol não foi “desconstruído”. Isso ocorreu na Inglaterra, onde a Premier League tornou-se monopólio da classe média e alta, setores que, ironicamente, antes consideravam o futebol coisa de pobre. Na Escócia, diz Raymond, a classe média sempre foi ao futebol, a classe alta idem. O futebol está entranhado de alto a baixo na sociedade escocesa. Na Escócia não houve uma gentrificação do futebol porque aqui o mercado é outro, bem menor e menos atrativo do que na Inglaterra. A Escócia é um país de 5 milhões, contra 60 milhões de habitantes na Inglaterra. Aqui o dinheiro da TV não chegou, não se pode cobrar a mesma coisa pelos ingressos. O season ticket de Raymond, cartão que lhe dá ingresso a todos os jogos da temporada, custa cerca de 400 libras, enquanto um season ticket do Arsenal custa 1000 libras. O que há em comum é que em ambos os casos há uma lista de espera de vários anos. Eu comprei o ingresso para aquele jogo por 28 libras, o que é pouco mais do que a metade do preço cobrado pelos quatro grandes clubes ingleses em jogos normais.

Apesar de não ter tido dificuldades em obter o ingresso pela Internet, fiquei sentado na fileira FF, ou seja, lá em cima, na última fila do estádio. Pelo menos era no Jock Stein Stand, o setor atrás do gol que congrega os torcedores mais fanáticos do Celtic. Aquela área é carinhosamente chamada de Jungle (“Selva”). Achei a atmosfera bem mais “quente” que da maioria dos jogos que assisti na Inglaterra. Foi uma das poucas vezes que vi grandes faixas penduradas por torcedores, uma delas com o rosto de Che Guevara. Havia também bandeiras verde e brancas e algumas bandeiras tricolores (verde, branco e laranja) da República da Irlanda. Uma delas era portada por um alegre torcedor que subiu as arquibancadas fazendo festa e não largou a bandeira durante todo o jogo, aproveitando o fato que estava na última fileira como eu, sem ninguém atrás para reclamar. Havia também torcedores com cachecóis do Celtic nas cores da Irlanda.

O Celtic é um time amado por irlandeses e seus descendentes no mundo todo. Sua história de sucesso em um meio hostil e preconceituoso é um símbolo eficaz para a construção de uma identidade irlandesa positiva. Há “supporters clubs” do Celtic nos quatro cantos do planeta, tanto em lugares de imigração irlandesa como a Austrália e os Estados Unidos quanto na Turquia ou a Malásia.

Antes do jogo, Raymond havia me falado do estilo Celtic de jogar, baseado em passes, jogadores pequenos mas habilidosos, jogo ofensivo e romântico. Tudo isso, como sempre, em oposição ao estilo Rangers, com jogadores altos e pesados, futebol força com chutão pra frente, rústico e violento. Claro que Raymond é suspeito. Por ser torcedor do Celtic e frequentador do Celtic Park desde criança, quando chegava duas horas antes com seu pai para pegar um bom lugar nos terraces, áreas onde os torcedores e torcedoras assistiam ao jogo em pé e expostos ao impiedoso clima escocês. Mas pelo menos no que diz respeito ao estilo Celtic ele pareceu dizer a verdade.

Pouco antes de começar a partida, um cena muito bonita, bastante aplaudida pelos torcedores do Celtic: toda a equipe forma um círculo de jogadores abraçados e curvados, simbolizando a união.

Desde o início do jogo, o time de camisas verde e brancas envolveu o Hearts com toques curtos e uma rápida movimentação. Em menos de 15 minutos já ganhavam de 1x0. Antes disso, logo nos momentos iniciais o Celtic já havia colocado uma bola na trave, numa magistral cobrança de falta feita pelo japonês Shunsuke Nakamura. “Naka”, como é chamado carinhosamente por sua torcida, é o craque do time. Magrinho e esguio, é um jogador de toques sutis e excepcional visão de jogo, além de uma canhota muito bem calibrada. A falta dele foi batida com um estilo que lembra seu professor, um certo Arthur Antunes Coimbra que foi técnico da seleção japonesa.

Da mesma forma que Zico no seu tempo, “Naka” cobra todas as faltas e escanteios. E com admirável precisão: o segundo gol veio de um córner cobrado por ele na cabeça do baixinho Scott McDonald no início do segundo tempo. Com pouca altura para um centroavante, McDonald compensa esse defeito com uma dedicação total. Foi premiado pela torcida naquela tarde com gritos de “There is only one Scott McDonald” (“Só há um Scott McDonald”). Outro jogador que caiu no gosto da torcida naquele dia foi Aiden McGeady, homenageado da mesma forma pelo público de mais de 56 mil pessoas. McGeady é escocês e McDonald é filho de escoceses, nascido na Austrália. Aqui está outra diferença em relação à Premier League inglesa: na Escócia há mais jogadores escoceses na primeira divisão. Pela falta de dinheiro para contratar grandes estrelas estrangeiras às dúzias, o futebol escocês dá maior espaço aos jogadores locais. Parece estar fazendo bem à seleção escocesa, que teve grandes chances de classificar-se para a Eurocopa de 2008, perdendo no último jogo de forma dramática para a sempre perigosa Itália.

Quando o Celtic faz 3x0, faltando 15 minutos para terminar, a festa é total. Os poucos torcedores do Hearts presentes, devidamente separados da torcida do Celtic por um cordão de stewards e policiais, são mandados para casa com muito bom humor pela torcida da casa. Um destino ainda pior espera os jogadores: nem quero pensar na bronca que tomaram de Mr. Romanov...

quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Gerrard e o Urso Polar (Parte II - Final)

A dinâmica do capitalismo global tende a ser concentradora e implacável. A indústria do entretenimento, capitaneada pelo futebol, explica o sucesso da liga inglesa mas também gera consequências indesejáveis. A constelação de astros vindos dos cinco continentes é ótima para a audiência da televisão, mas deixa pouquíssimo lugar para os jogadores ingleses, cada vez mais relegados às divisões inferiores e mesmo nessas ainda tendo que competir com inúmeros estrangeiros. Para se ter uma idéia, tomemos o time que liderava a 2a. divisão ao fim de janeiro de 2008, o West Bromwich Albion. Havia no seu elenco: um dinamarquês, um húngaro, dois holandeses, um esloveno, um eslovaco (não confundir), dois portugueses, um tcheco e um belga. Isto sem falar em um escocês e dois irlandeses, um do norte e um do sul (Eire). Não sobram muitas vagas para jogadores ingleses.

Quando a Inglaterra sofreu o choque de não conseguir classificar-se para a Eurocopa 2008, perdendo em pleno estádio de Wembley para a Croácia, muitos atribuíram o fracasso ao excesso de jogadores estrangeiros, sobretudo na Premier League. Aqui as opiniões se dividem. Sir Trevor Berbick, por exemplo, diretor da Football Association (FA) responsável pelas divisões de base, foi categórico: "A seleção está ameaçada, os números mostram isso. É um problema sério. Daqui a dez anos teremos que ficar satisfeitos em simplesmente conseguirmos nos classificar para as competições internacionais.” O Ministro dos Esportes, Gerry Sutcliffe, também se manifestou no mesmo sentido. Outro a pensar da mesma forma é o craque do Liverpool e da seleção inglesa, Steven Gerrard. “Há um grande perigo de que paremos de produzir garotos de qualidade por causa da quantidade de estrangeiros nos clubes”, afirmou Gerrard. Ele é até mesmo a favor de quotas máximas para jogadores estrangeiros e diz-se “desesperado para que surja outro garoto [como ele] vindo das divisões de base do Liverpool”. As autoridades do futebol internacional concordam com Gerrard. Sepp Blatter, presidente da FIFA, propôs o estabelecimento de uma quota de 5 jogadores estrangeiros por cada clube, em nome da “proteção à identidade nacional dos clubes de futebol”, salientando também a vantagem econômica, pois será mais barato para os clubes utilizarem jogadores nacionais. Talvez. O fato é que a imposição de uma quota para “estrangeiros” é algo contrário à Constituição da Comunidade Européia, que protege os direitos de livre movimentação e contratação dos trabalhadores, inclusive dos jogadores de futebol.

Além do problema legal, aparentemente insuperável, há quem seja contra a quota por outros motivos. Arsène Wenger, o técnico francês do Arsenal, brandiu o argumento da excelência: “Eu sempre achei que o esporte premia a qualidade e não se esconde por detrás de regras artificiais. Se você rebaixa o nível da turma, isso não torna melhores os maus estudantes, torna-os piores. Competir com os melhores jogadores do mundo é uma chance de subir seu nível. Se você organiza um torneio de golfe, as pessoas vão para ver Tiger Woods, na Escócia ou em qualquer outro lugar. Quando você vai a Wimbledon, quer ver Roger Federer. É isso que as pessoas querem hoje em dia. O mundo mudou. As pessoas querem o melhor do mundo e agora não vão querer assistir mais a um nível inferior [de espetáculo]”. O ex-técnico da seleção inglesa, o sueco Sven Goran Eriksson, atualmente treinando o Manchester City, também é contra as quotas: “Se você quer ter uma Europa aberta, na vida, nos negócios, com pessoas trabalhando em diferentes países, você não pode isolar o futebol. Temos que conviver com isso.” Muitos também contestaram o argumento de que os estrangeiros estariam enfraquecendo a seleção inglesa ao lembrar que os maus resultados (nenhuma conquista após a Copa de 1966) são muito anteriores à avalanche de jogadores multinacionais iniciada sobretudo após 1995.

De qualquer forma, um observador atento poderia lembrar que tanto Wenger quanto Eriksson são partes interessadas, pois ambos desfrutam de um amplo orçamento que lhes permite contratar jogadores de qualidade independentemente da nacionalidade. Aqui há uma contradição inevitável: é verdade que as leis européias protegem os trabalhadores e que obviamente os jogadores de futebol devem ser considerados como tal. Por outro lado, na prática são apenas os maiores clubes do mundo que se beneficiam disso, gerando uma competição desigual com os restantes. No fundo, trata-se de uma queda-de-braço entre o futebol como negócio e uma tradição secular cada dia mais ameaçada, entre o futebol como mercadoria da indústria do entretenimento (leia-se sobretudo televisão) e o futebol enquanto parte de uma identidade local e nacional. Em suma: entre o lucro e a paixão.

Também há quem diga que toda esta discussão sobre seleção e jogadores nacionais ou estrangeiros esteja totalmente ultrapassada. Simon Jenkins, em um artigo publicado no The Guardian (16-11-2007), argumenta que a realidade virtual já ultrapassou a geografia: “Clubes de futebol tem seus próprios websites e canais de tv, seus torcedores são cada vez mais independentes da localidade. Eles juntaram-se à vizinhança global onde pode-se surfar na internet em busca de cultura sem fronteiras, emprego, lazer e até mesmo de amigos. (...) A distância tornou-se insignificante.” Ao invés de estabelecer quotas para jogadores estrangeiros, ele propõe que a seleção inglesa simplesmente “compre” os melhores jogadores que toparem vestir a camisa dos três leões. Apesar de não concordarmos com ele, temos que admitir que de certa maneira isto já está acontecendo. Voltemos ao jogo que eliminou a Inglaterra da Eurocopa e deslanchou todo este debate. É irônico e bem característico do que ocorre hoje no futebol que um dos gols da Croácia tenha sido criado por um passe magistral do "croata"-carioca Eduardo Silva, ex-jogador do Bangu e atual camisa 9 do Arsenal.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Més que un club?

A publicação da segunda e última parte da crônica da semana passada ("Gerrard e o urso polar") vai atrasar uma semana. É que estive viajando e não pude concluí-la a tempo. Mas resolvi fazer um pequeno comentário acerca da visita que fiz ao Camp Nou, estádio do Barcelona.

Como todos sabem, o F.C. Barcelona, criado em 1899, encarna o orgulho catalão diante do poder central, contra o qual a Catalunha já lutou (e perdeu) três guerras. Na última delas, a sangrenta Guerra Civil Espanhola em 1936, aviões alemães bombardearam Barcelona em nome de Franco. Quando a bandeira da Catalunha foi proibida, a do Barcelona passou a ser usada em seu lugar. O que move a rivalidade feroz entre Barça e Real Madrid (apoiado pelo ditador) é este ódio secular, muito anterior à criação dos dois clubes e até do futebol como nós o conhecemos.

Com 150.000 sócios, o Barcelona é um clube riquíssimo, apoiado incondicionalmente por sua torcida e com a maior média de público da Europa, acima dos 73 mil por jogo. O Camp Nou é absolutamente espetacular, com sua arquitetura arrojada, traço típico de uma cidade sempre lembrada pelas obras do genial António Gaudí. Inaugurado em 1957, o novo estádio foi um dos pilares da reconstrução da auto-estima catalã. Basta-se dizer que no dia da colocação da pedra inaugural apareceu uma multidão de mais de cem mil pessoas. Além do estádio de futebol, há um complexo esportivo com ginásio para basquete, hóquei e outras modalidades.

Qualquer torcedor também sabe que o Barcelona é um dos poucos, senão o único clube dentre os maiores do planeta a não aceitar colocar um patrocínio para a sua camisa. É como se as cores do Barça fossem sagradas. Nas arquibancadas do estádio, está pintado o lema "Més que un club" ("Mais que um clube"), indicando claramente esta idéia. Pena que também esteja pintado, em igual tamanho, o logo da Nike. E o que me causou ainda mais espécie foi a visita à loja do clube. Por um lado, há todo o tipo de quinquilharia com o símbolo do clube como em qualquer megastore de um clube da Premier League, de babadores de neném até uma geladeira nas cores tradicionais. Mas é absolutamente espantoso (vejam a foto abaixo) que haja camisas à venda da Juventus de Turim, do Internazionale de Milão, do Celtic (da Escócia) e até do Arsenal... Heitor, meu filho de 13 anos, matou a charada imediatamente: "É uma loja da Nike, pai, não é uma loja do Barcelona..." A sorte da Catalunha é que o Real Madrid é patrocinado pela Adidas...

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Gerrard e o Urso Polar (Parte I)

Da mesma forma que o aquecimento do planeta ameaça a existência de diversas espécies, dentre elas o Urso Polar, o aquecimento econômico da Premier League ameaça a existência do jogador inglês. No primeiro ano da então Premiership, em 1992, havia em média 8 jogadores ingleses entre os 11 titulares. Na primeira rodada da temporada passada (2006-7), este número havia caído para quatro. Mesmo que somemos todos os jogadores britânicos (isto é: ingleses + galeses + escoceses + irlandeses), os números continuam assustadores: em 1992 os jogadores britânicos eram 90% contra apenas 44% na temporada 2006-7. Em suma: os jogadores estrangeiros passaram de 10% a 56% em 14 anos. Mais da metade, quase 6 em cada 11 jogadores. Esta é a mais alta porcentagem de estrangeiros em uma primeira divisão nacional dentre as principais ligas européias.

Na temporada atual o número de estrangeiros aumentou de 123 para 196, vindos de 66 países diferentes. O Bolton Wanderers, por exemplo, é uma verdadeira “Legião Estrangeira”, com 24 países diferentes representados na equipe. O Arsenal, que tem liderado a maior parte da atual temporada, normalmente entra em campo com 11 estrangeiros. O Arsenal, aliás, foi o primeiro clube na história do futebol inglês a escalar 16 jogadores (11 em campo + 5 no banco de reservas) estrangeiros em 2005. Mais de 100 jogadores que participaram da Copa de 2006 jogam hoje em campos ingleses.

Por um lado, esta é uma história de sucesso retumbante. A média de público passou de 21 mil em 1992 para 35 mil em 2007-8, o que equivale a uma taxa de ocupação dos estádios superior a 90%. A Premier League é hoje uma febre planetária, assistida pela telinha em mais de 200 países, com um público acumulado de mais de 3 bilhões de telespectadores. É aquilo que os economistas chamam de um “círculo virtuoso”: os direitos de transmissão geram recursos que são investidos na contratação dos melhores jogadores do planeta, atraindo mais audiência e por sua vez levando ao aumento no valor dos direitos televisivos. A Premier League vendeu os direitos de transmissão das próximas 3 temporadas, até 2009-10, pelo equivalente a 11 bilhões de reais. Só para se ter uma idéia, a primeira divisão espanhola, a outrora hegemônica La Liga, onde jogam Ronaldinho, Messi e Robinho, dentre outros, recebe um terço disso pelos direitos de transmissão do seu campeonato.

Essa dinheirama toda é utilizada em grande parte para a contratação de jogadores e pagamento de salários. Na atual temporada os 20 clubes da primeira divisão inglesa já gastaram mais de 2 trilhões de reais em tranferências. Mesmo as mais ricas ligas européias ficam à mercê do maior poderio econômico da Premier League. Estrelas de primeira grandeza em seus países, como o alemão Ballack ou o espanhol Fernando Torres, transferem-se por somas milionárias que clubes como Bayern de Munique ou Atlético de Madri hoje não têm condições de igualar. Há uma verdadeira pilhagem dos jovens talentos e mesmo um clube do porte do Real Madri vê jogadores das suas divisões de base sugados pelo furacão Premier League. Foi assim com o argentino Gerardo Bruno, de 15 anos, contratado pelo Liverpool em novembro de 2007, depois de passar 3 anos nas divisões de base do Real. Como resumiu muito bem o técnico das divisões de base do clube espanhol: “Isso acontece todo o tempo na Inglaterra. Quando eles vêem alguém de quem eles gostam, levam-no embora.” Cristiano Ronaldo, por exemplo, foi contratado pelo Manchester United depois de uma boa atuação contra os Red Devils quando ele ainda vestia a camisa do Sporting de Lisboa.

Na verdade, a Premier League pode ser considerada um empreendimento típico do capitalismo global. Nove dos vinte clubes têm proprietários estrangeiros, quase sempre bilionários sem maiores ligações com o futebol enquanto esporte e sim como big business. Vêem-se crianças com camisas do Manchester United nos quatro cantos da Terra e o clube alega ter 333 milhões de fãs em 21 países diferentes. Os principais clubes fazem pré-temporadas na Ásia, de olho em um mercado que cresce a cada dia. Ou seja, é uma liga jogada na Inglaterra, mas por jogadores de todo o mundo para uma platéia igualmente planetária.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Me dá um dinheiro aí


O fato mais impressionante do Campeonato Brasileiro de 2007: como a torcida empurrou o Flamengo para uma honrosa terceira colocação, com direito a Libertadores em 2008. Isso para uma equipe que chegou a rondar e até a frequentar a famosa ZR, zona do rebaixamento. Dizia o genial tricolor Nelson Rodrigues que no Flamengo "time e torcida completam-se numa integração definitiva". Diante de tal potência, vira e mexe alguém sugere que o Flamengo poderia pagar toda a sua dívida e ainda ficar com algum para gastar se cada um dos 35 milhões de rubro-negros desse uma graninha.

Torcedores doando dinheiro para apoiar seu clube? A história do futebol inglês mostra que não é uma boa idéia. Até a primeira metade do século XX era comum os dirigentes recorrerem a subscrições feitas junto aos torcedores. Os recursos eram usados na construção ou reforma do estádio, para comprar um determinado jogador ou tão simplesmente para evitar a falência do clube. Assim que o dinheiro mudava de mãos os torcedores eram ignorados e nem sempre o dinheiro era aplicado corretamente. Apesar disso, criaram-se muitos “Supporters Clubs”, alguns deles ativos desde 1901. Havia uma entidade nacional que os congregava desde 1927 e em 1953 estes grupos de apoio aos clubes reuniam meio milhão de torcedores.

A crise da década de 1980, gerada sobretudo pelo hooliganismo, obrigou os torcedores a mudarem de estratégia. O plano do governo conservador de criar um cartão de identificação dos torcedores (que está sendo implementado no Brasil) levou a uma reação indignada que desembocou na criação da Football Supporters Association (Associação dos Torcedores de Futebol). Esta entidade, de caráter nacional, mobilizou os torcedores em torno dos seus direitos e um abaixo-assinado com 250.000 pessoas conseguiu barrar a proposta de Margaret Thatcher.

A década de 90 assistiu à criação de associações independentes de torcedores (Independent Supporters Associations), bem mais críticas e politizadas do que os grupos de apoio típicos que existiam anteriormente. Algumas vitórias conseguidas por associações deste tipo merecem ser mencionadas. Em 1993 a associação de torcedores do West Ham impediu que o clube implementasse um esquema que vinculava a compra de ingressos à posse de um cartão custando 500 libras (R$ 2.000). Os torcedores do Charlton, congregados em torno do fanzine Voice of the Valley, foram bem sucedidos em uma campanha para que o clube retornasse a seu estádio de origem. Leeds e Newcastle viram seus torcedores desencadearem campanhas contra o racismo que acabaram levando ao desenvolvimento de uma campanha nacional.

A criação da FA Premier League, em 1992, representou um duro golpe para os torcedores e suas organizações. A venda dos direitos televisivos para um mercado global tornou os clubes menos dependentes dos seus fãs locais, diminuindo a sua capacidade de pressão. Mas os torcedores continuaram se fazendo ouvir. Muitos criaram o que se chama de um Football Trust, ou seja, uma organização para arrecadar fundos que são aplicados no clube, mas de acordo com o que decidem os torcedores. O dinheiro não é entregue na mão dos dirigentes, os torcedores exigem contrapartidas. É claro que este esquema é mais presente e efetivos nos pequenos clubes, onde as quantias arrecadas pelos torcedores ainda têm um impacto significativo. O governo trabalhista de Tony Blair criou um fundo governamental para apoiar estas iniciativas de torcedores, visando democratizar o futebol. Esta verba foi fundamental, por exemplo, para a criação do FC United of Manchester (http://www.fc-united.co.uk/ ), já abordado na crônica da semana passada (ver “Rebeldes F.C.”).

Na verdade, o FC United inspirou-se no AFC Wimbledon. Este foi criado em 2002 por torcedores desgostosos com a transferência do seu clube para uma outra cidade, a 100 quilômetros de distância. É algo muito comum ... no futebol americano, onde os clubes buscam um melhor “mercado consumidor”. Seja como for, o nome do antigo clube acabou sendo modificado pelo novo proprietário para MK Dons enquanto os incorformados torcedores passaram a seguir o AFC Wimbledon. O MK Dons está atualmente na 4a. Divisão (League Two), enquanto que o clube criado pelos torcedores disputa a 7a. Divisão.

Recentemente, foi inventada uma nova forma de participação para os torcedores: o clube virtual. O pioneiro foi o MyFootballClub (http://www.myfootballclub.co.uk/ ). Pelo equivalente a 140 reais, você torna-se dono de um clube de futebol, com direito a votar na escalação do time, dar palpite na contratação de jogadores etc. Em poucas semanas, 20 mil pessoas aderiram ao esquema gerando 700.000 libras (dois milhões e oitocentos mil reais). Na segunda semana de novembro, o site anunciou que havia concluído a negociação com o Ebsfleet F.C., um clube que atualmente disputa a Blue Square Premier (5a. Divisão). Este clube foi escolhido entre sete outros que procuraram o site dispostos a aderir ao esquema.

De imediato, houve uma chuva de críticas. A principal dela é que torcedores virtuais, interessados em “brincar de proprietário”, agora terão em mãos o destino de um clube real, em detrimento dos torcedores de verdade. É aquilo que o Martin Samuel, colunista do The Times, chamou em um artigo de “Poder para as pessoas erradas”. Muitos também vaticinam um desastre iminente pelo fato dos proprietários virtuais escalarem o time e opinarem nas contratações sem maior conhecimento de causa.

Seja lá como for, todas estas inciativas demonstram que há muitas e melhores possibilidades para os torcedores além do modelo "Me dá um dinheiro aí"...

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

REBELDES F.C.

Oi, pessoal, para quem gosta de pensar (e se divertir), vale a pena dar uma olhada no primeiro número da Revista Contracultura: www.uff.br/revistacontracultura . Foi lá que publicamos este artigo.

um abraço a tod@s,

Marcos Alvito

Rebeldes F.C.

Qual torcedor não sonha em vestir as cores do clube e entrar em campo? Que tal marcar aquele gol “feito” que o infeliz centroavante acaba de perder? Ou fazer um lançamento perfeito deixando alguém na “cara do gol”? Quem sabe livrar seu time da derrota, salvando uma bola em cima da linha? Rob Nugent não precisa mais sonhar. Este rapaz de 24 anos já realizou o maior sonho da sua vida: jogar futebol pelo seu clube. Até 2005, seu clube era o todo-poderoso Manchester United, com certeza o clube mais conhecido da Terra, com milhões de torcedores globais espalhados por todos os continentes. No último balanço realizado pela empresa de consultoria Deloitte & Touche, o Manchester United aparece novamente o clube mais rico do mundo, valendo mais de um bilhão de libras (quatro bilhões de reais).
Como diz aquele samba, dinheiro não traz felicidade. O clube foi criado numa época em que ainda não se usavam redes (nenhum locutor podia se esgoelar gritando “tá lá na rede”) e em que muitas traves ainda tinham fitas servindo de travessão. O futebol ainda era amador, embora fossem comuns pagamentos “por debaixo do pano” até 1885 quando o profissionalismo foi legalizado na Inglaterra. Naquele ano de 1878, em que os juízes de futebol passaram a usar apito (antes devia ser no grito), os ferroviários de Manchester fundaram o Newton Heath Football Club, que utilizava um belo uniforme quadriculado verde e amarelo. O início não foi dos mais fáceis e em 1902 o Newton Heath mudou seu nome para Manchester United por exigência do mecenas que salvou o clube da falência.
Na década de 30, o clube esteve novamente à beira da falência. Em 1941, durante a Segunda Guerra Mundial o estádio de Old Trafford sofreu um pesado bombardeio alemão e teve que ser reconstruído. Na década de 50, o clube foi marcado pela tragédia de Munique em 1958, quando o avião transportando a jovem e brilhante equipe dirigida por Matt Busby espatifou-se na pista depois da terceira tentativa de decolagem, roubando a vida de 21 pessoas, inclusive 8 jogadores do Manchester United.
Dois sobreviventes daquele dia, Matt Busby e o genial meio-campista Bobby Charlton, celebraram dez anos depois a primeira conquista de uma copa européia (hoje chamada Champions League), derrotando o Benfica de Eusébio, à época considerado rival de Pelé. Mesmo assim, o Manchester United estava longe de ser um clube super-poderoso até mesmo na Inglaterra. Na década de 70, era comum os torcedores adversários gritarem “You are never going to win the League” (“Vocês nunca serão campeões”) e em 1974 o clube foi rebaixado para a segunda divisão.
Na década de 90, a sorte mudou e o trabalho de Sir Alex Ferguson, técnico do Man United desde 1986, começou a dar frutos. O clube é o maior vencedor do futebol inglês após 1992, ano da criação da Premier League, tendo conquistado o título nove vezes em quinze temporadas.
Nesse mesmo período, o clube investiu na sua transformação em uma multinacional do entretenimento esportivo, com uma agressiva campanha de marketing direcionada sobretudo para o mercado asiático, onde a camisa vermelha do United é um objeto de consumo altamente desejado. O potencial mercadológico do clube não passou despercebido para os peso-pesados do capitalismo. Primeiro foi o polêmico Rupert Murdoch, dono da maior cadeia de jornais, revistas e televisão do mundo. Uma de suas empresas, a tv a cabo BskyB, tentou comprar o Man U (como costuma ser chamado na Inglaterra) em 1999. A ativa resistência dos torcedores, debaixo da bandeira “Not For Sale” (“Não está à venda”) impediu que o negócio fosse realizado. Depois de muita luta, as autoridade inglesas consideraram ilegal que a empresa televisiva que detinha os direitos de transmissão fosse dona de um dos clubes.
Depois de derrotarem Murdoch, os fãs tiveram que enfrentar outro desafio: em 2003 os ricos criadores de cavalos John Magnier e J.P. McManus começaram a comprar ações do clube com intenção de obter o controle total do Manchester United. Desta vez, todavia, não havia como apelar para o governo. Os torcedores partiram então para táticas de “guerrilha”: impediram a realização de uma corrida de cavalos, ergueram piquetes em frente às companhias ligadas a Magnier e McManus, fizeram ataques virtuais aos servidores da empresa, bombardearam as famílias e o staff com e-mails agressivos e, por fim, pintaram de vermelho as residências dos futuros donos do clube. Os milionários irlandeses sucumbem à pressão dos torcedores e desistem do seu intuito de tomar o clube em 2004. Outra batalha vencida, mas a guerra continuava. Entra em campo outro bilionário, o norte-americano Malcom Glazer, proprietário do Tampa Bay Bucaneers, uma equipe de futebol americano. Glazer “cresce o olho” para um clube com pouca dívida e enorme penetração no mercado global do entretenimento. Em 2005, apesar de novos e pesados protestos dos torcedores, o norte-americano compra 90% das ações, o que pela lei obriga todos os outros acionistas a lhe venderem as ações restantes.
Além da compra do clube por alguém sem nenhuma ligação anterior com o futebol inglês ou com o Manchester United, há também a forma como o negócio foi realizado. Por uma mágica que só o capitalismo é capaz de operar, Glazer não comprou o clube tirando dinheiro do próprio (e bem recheado) bolso.
Fez um empréstimo de 500 milhões de libras (2 bilhões de reais) em nome do clube. Ou seja, o Manchester United passou a dever meio bilhão de libras para que Glazer o comprasse. É claro que isso implicou em aumento do preço dos ingressos, ou seja: os torcedores é que iriam pagar a conta.
Diante dessa situação imoral, um grupo de torcedores muito ativos decide boicotar o clube, prometendo não ir ao estádio. Tony Howard estava entre eles. É com muita revolta e tristeza que ele me conta que arremessou seu season-ticket (cartão permanente) pela janela. Ainda hoje, dois anos depois, persiste em Tony sensação de que seu clube e seu lugar no estádio há mais de uma década foram roubados. Mas torcedor unido jamais será vencido. E em junho de 2005, o mesmo grupo que lutara contra a venda do Manchester decide criar um novo clube para competir no campeonato daquele ano. Em apenas 4 semanas eles criaram FC United of Manchester. Apelido: “The Rebels” (“Os Rebeldes”).
As cores vermelha, branca e preta são as mesmas do clube comprado pelo milionário norte-americano, mas o FC United é um clube completamente diferente. É dirigido democraticamente por um conselho eleito por seus membros. São cerca de 2.000 torcedores, cada um com um voto. O FCUM é uma entidade não-lucrativa e sua constituição obriga o clube a tentar manter preços acessíveis e a estabelecer uma ligação com a comunidade local. Dois anos depois, o clube criado pela Internet é uma realidade. Começou na 10a. Divisão, mas foi campeão duas temporadas seguidas e hoje joga na Unibond League First Division North, ou seja: o equivalente à 8a. Divisão. O time tem uma excelente média de público, cerca de 2.000 torcedores por jogo. E no momento em que escrevo (novembro de 2007) encontra-se na terceira colocação, candidato a subir de divisão no ano que vem.
É neste “clube dos torcedores” que joga o ruivo Rob Nugent. Aquela fria noite de Manchester começou mal para ele. Com menos de 5 minutos o FC já estava perdendo para o Rossendale por conta de uma bola mal atrasada para o goleiro por Rob. Ao fim tempo, com o FC perdendo de 1x0, eu e meu amigo Adam Brown mudamos de lugar na arquibancada. Adam é um sociólogo-torcedor que ajudou a fundar o clube e ainda hoje é um dos seus dirigentes. Superstição à parte, no segundo tempo o time melhorou muito e virou a partida marcando cinco lindos gols. Depois do jogo, entrevistei Rob Nugent. Ele ainda estava aflito com seu erro no primeiro tempo, mas muito feliz com a vitória. Afinal, Rob Nugent não é apenas um zagueiro do FC United. Ele estava entre os torcedores que protestaram contra a venda do Man U para Glazer. Foi quando estava na fila de fundadores do FC que um conhecido comentou que Rob já havia jogado futebol profissional no Sheffield United, um dos clubes mais antigos e tradicionais da Inglaterra. Escalado para um teste, Rob passou e hoje veste com orgulho a camisa número 6 do FC. O sonho de Rob virou realidade.


Prorrogação: hoje o FC enfrenta um novo desafio. Foi lançada uma campanha na Internet para arrecadar fundos para a construção de um estádio próprio, inicialmente com 750 assentos. Se o leitor ou leitora quiser ajudar os Rebeldes ou conhecer mais um pouquinho sobre o clube, basta clicar em http://www.fc-utd.co.uk/ .